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O chifrudo do Capitólio e a perda da virilidade

A quarta-feira 6 de janeiro de 2021 ficará marcada como o dia em que a democracia na América foi tomada de assalto por radicais de direita, anti-democráticos, todos brancos e fortemente armados, com a conivência das forças de segurança que deveriam preservar a integridade do Capitólio em Washington, D.C.

Não quero comentar aqui os elementos políticos desta desastrada afronta às instituições daquela que é considerada um exemplo entre as democracias ocidentais – afinal de contas, não é este o foco deste espaço –, mas não poderia deixar de comentar as interessantes relações entre o que vimos neste episódio e uma bem demarcada e declinante tendência de perda da virilidade entre os homens.

Não vou repetir a imagem que vimos à exaustão, do cidadão de torso nu, cara pintada, e chifres, apelidado de “Jamiroquai”, mas seu perfil merece ser explorado pelo que traz de ilustrativo deste fenômeno que quero comentar.

O sujeito tem 32 anos, é branco, mora no Arizona e completou o ensino médio em 2005. Dois anos depois, foi expulso da Marinha por se recusar a tomar a vacina contra o antrax – uma regra entre os militares norte-americanos, para proteger as tropas contra ataques biológicos. Tentou uma carreira de ator e dublador, sem sucesso. Mora com a mãe.

Ou melhor, morava, até ter sido preso depois de suas peripécias no Congresso americano e vai ter que responder por acusações de depredação de patrimônio e invasão de prédio público, com ameaça de pegar até 10 anos de cadeia. A mamãe, coitada, está muito preocupada com a saúde do “menino”, que só come comida orgânica e que, por conta disso, logrou ser recentemente transferido para uma prisão na Virgínia, mais ajustada a sua “dieta”.

(Que diferença com o tratamento recebido por Terrill Thomas, morto aos 38 anos em uma prisão de Milwaukee, depois de ficar 8 dias em confinamento na solitária, SEM ÁGUA! Claro, ele era preto.)

O camarada é militante de uma espécie de “seita” de extrema-direita intitulada QAnon, segundo a qual a política norte-americana foi tomada por pedófilos satanistas canibais, que controlam uma rede global de tráfico de crianças para fins sexuais, e que pretendiam apear o então presidente Trump do poder. A suposta seita ganhou projeção nas redes sociais a partir de outubro de 2017, e o número de idiotas a ela associado cresceu desde então, fenômeno típico de radicalização que tem se acentuado em tempos recentes pelas redes (anti)sociais.

Pelo menos o sujeito está preso, junto com cerca de outros 120 imbecis que participaram da invasão ao Capitólio.

Mas aí me pergunto: como é possível entender isso?

Meu palpite é que o chifrudo do Capitólio e sua turma são a “ponta do iceberg”, ou apenas o fenômeno mais radical e visível de algo que subjaz na relação entre os gêneros há muito tempo e que vem ganhando destaque neste novo século: a exacerbação do medo/ódio do feminino pelos homens.

O medo dos homens com relação ao feminino não é recente. Muito pelo contrário, suspeito que remonta aos tempos em que as tribos de caçadores-coletores se converteram em grupos agricultores sedentários e surgiu a noção de propriedade privada. A preocupação com os herdeiros trouxe a necessidade de garantir que a prole que o chefe alimentava era de fato geneticamente sua. Começa aí o controle do útero da mulher pelo homem, que perdura até hoje e tem sua expressão máxima no condicionamento limitante trazido pelo patriarcado.

E mesmo em culturas consideradas mais “espiritualizadas”, notadamente no Oriente, as mulheres foram impedidas de entrarem nos monastérios e, quando manifestavam alguma “vocação espiritual”, foram apartadas em conventos específicos para elas e relegadas sempre a papéis secundários nas grandes religiões que conhecemos. O profundo conhecimento e sabedoria do feminino foi passado de geração em geração pela tradição oral e, por não ser documentado, em grande parte se perdeu, ou foi intencionalmente destruído nos inúmeros episódios de “caça às bruxas” que conhecemos.

Com a Revolução Industrial e a rápida expansão da tecnologia dela decorrente, tem início a primeira onda de redução do poder do masculino, associado no passado à superioridade física do homem e à pura brutalidade das guerras tribais e do controle territorial, às quais se sucediam o estupro das mulheres da aldeia recém conquistada. As máquinas passavam a substituir o trabalho braçal e, à medida que a tecnologia se modernizava, cada vez mais era possível às mulheres realizar exatamente as mesmas tarefas que os homens.

Outro efeito colateral negativo (para os homens!) da Revolução Industrial foi separar os meninos de seus pais nos afazeres cotidianos. No passado, o “ofício” era transmitido de pai para filho na lide diária, seja na agricultura, seja na atividade artesanal: “filho de sapateiro, sapateiro é”. Embora houvesse praticamente uma ausência completa de mobilidade social nestes regimes “tradicionais”, se preservava um aspecto muito importante do masculino, que é o aprendizado por transmissão ou por imitação direta: o menino “aprende” a ser homem por imitação dos comportamentos do pai. Com a chegada das fábricas e do trabalho de escritório necessário para administrá-las, o menino vê o pai sair de casa para trabalhar, mas não tem a menor noção do que ele concretamente faz. Ele apenas observa o pai retornar à noite, exaurido e esvaziado de propósito, e passa a associar um fardo negativo ao trabalho ou ao emprego. A noção de “missão” desaparece.

Ao final do século XIX, surge o movimento sufragista e a primeira onda do feminismo, questionando as diferenças de direitos entre homens e mulheres. Já no século XX, as Grandes Guerras acentuaram o movimento de entrada das mulheres nas fábricas, ao mesmo tempo em que mutilavam os homens nos campos de batalha, trazendo um renovado medo da castração e perda de virilidade e de poder físico dela decorrentes.

Nos anos 1960, o movimento feminista realmente ganha força e acelera um conjunto de mudanças aparentemente sem retorno nas sociedades ocidentais, que hoje inclusive contamina positivamente regiões outrora mais atrasadas do Oriente. Mas o quadrilátero pílula-independência financeira-divórcio-ausência do pai, embora trazendo crescente e positiva liberdade para as mulheres, acabou criando uma geração de meninos que cresceu sem uma figura paterna madura e estável como referência.

Nas sociedades tribais, a marcação biológica da menarca (a primeira menstruação) era acompanhada, no caso dos meninos, de um ritual correspondente de iniciação à idade adulta que era marcado, entre outros elementos, por uma traumática separação física da mãe, com o intuito de fazer o menino-criança se libertar do “complexo materno” e penetrar no mundo do adulto-guerreiro.

Com a perda dessa conexão ancestral com os ritos de iniciação, temos como resultado esse fenômeno psicológico moderno e cada vez mais doentio: a adolescência. Período que começa por volta dos 12 anos nos meninos e que, em muitos casos, se estende pelo resto da vida…

Recentemente, a contínua expansão dos direitos das mulheres e ascensão delas no mercado de trabalho trouxe ganhos e vantagens também para outras minorias tradicionalmente excluídas pelo patriarcado, como os negros e a comunidade LGBTQIA+, deixando o homenzinho branco cada vez mais acuado.

Hoje, pelos menos nos Estados Unidos, já há mais mulheres diplomadas em universidades do que homens, que tendem a abandonar os estudos antes mesmo do final do ensino médio. Como consequência, o homem perdeu também o papel de “provedor” e de responsável pela renda familiar, já que sua parceira é mais bem sucedida e ganha mais do que ele. (No exemplo em questão, nosso chifrudo morava com a mamãe até ser preso).

Como era de se esperar, há um movimento reacionário, conservador, que fala para essa população de machinhos ofendidos e acentua o ódio primal do feminino: começam os NOFAP (movimento que prega abstinência) e os MGTOW (“men going their own way”, que defendem o fim do relacionamento equilibrado entre homens e mulheres e o uso dos corpos delas apenas para a satisfação sexual). Há inclusive novos “pensadores” (sic) do conservadorismo machista, como Jack Donovan – que é homosexual, mas repudia a “cultura gay” –, que são extremamente misóginos e argumentam que o globalismo e a civilização “feminilizam” a humanidade e enfraquecem a natureza viril do homem. Para este tipo de imbecil, a solução dos problemas do homem contemporâneo é o chamado “tribalismo bárbaro”, ou atuação em gangues, que recolocará os homens em posição de destaque – que nunca perderam, cá entre nós – através da violência extrema. Daí o chifrudo do Capitólio.

O que vemos na prática é um crescimento alarmante da violência contras as mulheres em geral, e o feminicídio em particular, especialmente agravados pelo confinamento social trazido pela pandemia da COVID-19.

Há um arranjo de forças conservadoras que buscam manter a assimetria de gênero e a heteronormatividade a todo custo, inclusive causando potencial retrocesso em ganhos e conquistas sociais recentes, como a união homo-afetiva e os ainda pequenos avanços na liberdade do útero, através de leis mais flexíveis quanto ao aborto – não no Brasil evangélico, infelizmente.

Temos muito o que avançar na desconstrução do machismo no país. Talvez ridicularizar os chifrudos do Capitólio e a “machonaria” no Brasil seja um bom começo.

O valor da ayahuasca (e outras experiências de pico)

Ayahuasca image

Decidi escrever esta coluna depois de muito questionamento em meus grupos de homens sobre experiências com a ayahuasca e outras substâncias alteradoras de consciência – incluindo aqui a maconha e o álcool. Sei que estou correndo o risco de ofender muita gente, especialmente depois de o culto à raiz amazônica ter se disseminado tanto nos últimos anos, em todos os tipos de comunidades assim chamadas ‘espirituais’ ou de ‘buscadores’. Em todo caso, é útil avaliarmos o papel da ayahuasca e de outras substâncias capazes de causar o fenômeno comum das “experiências de pico” no caminho espiritual.

O uso da ayahuasca (também chamada de hoascaiagê, daime, Santo Daime, ou vegetal) é antigo e remete à Amazônia peruana, com os primeiros relatos conhecidos remontando à invasão espanhola no século XVI, sendo os primeiros documentos escritos por jesuítas a partir de 1737, referindo-se ao seu uso para “adivinhação, mistificação e enfeitiçamento”. Considerada o ‘cipó do espírito’, a bebida é uma combinação da videira Banisteriopsis caapi com as plantas Psychotria viridis (‘chacrona’) e Diplopterys cabrerana (‘chaliponga’) e estima-se o início de seu uso pelos indígenas americanos entre 1500 e 2000 a.C.

Recentemente, sua expansão tem a ver com o crescimento de uma vertente da busca espiritual através do caminho das plantas e da conexão com a natureza, sendo os movimentos religiosos associados à planta mais significativos e conhecidos no Brasil o Santo Daime (1930), a União do Vegetal (1961) e a Barquinha (1945). Estas práticas modernas podem ser consideradas uma parte daquilo que chamamos latu sensu de xamanismo, ou caminho xamânico, associado aos poderes curadores dos pajés na tribos ancestrais.

Me interessa falar aqui sobre os efeitos psicotrópicos destas “drogas naturais” e seu papel na busca espiritual e no caminho do despertar.

Em primeiro lugar, alguns pesquisadores defendem uma distinção entre o que se chama de ‘alucinógenos’ (ou ‘psicodélicos’) e as substâncias enteógenas, ou enteogênicas. Estas estariam associadas a toda a substância capaz de produzir um estado alterado de consciência que induz ao ‘êxtase’ ou ao ‘estado xamânico’, enquanto as primeiras seriam mais adequadas para a classificação das drogas recreativas, como o LSD, o MDMA (ecstasy), a cannabis e o álcool. No entanto, esta distinção tem menos a ver com uma questão técnica, no sentido da farmacologia destas substâncias, e deve, na verdade, ser compreendida a partir do contexto de uso de uma e outra. Assim, as substâncias seriam consideradas enteógenas quando utilizadas em um contexto cerimonial, sagrado, ritualístico, ao passo que o uso lúdico caracterizaria a substância como psicodélica ou alucinógena.

De modo geral, a ayahuasca – e diversos de seus ‘primos’, como o peiote, o San Pedro e, numa versão mais corriqueira e (des)espiritualizada, a própria maconha e o LSD – tem o potencial de produzir o que chamamos tecnicamente de “experiência de pico”: um efeito psicológico de “vislumbre” de uma outra dimensão ou aspecto da realidade, inacessível na ausência da substância, e que para muitos se configura em sua primeira experiência de desvelamento da realidade objetiva, concreta, em “algo a mais” do que aquilo que se constata com a aplicação dos cinco sentidos nas atividades cotidianas. Muitas vezes, estas experiências acabam também sendo batizadas de “experiência mística” ou “experiência espiritual”.

Uma experiência de pico tem, assim, a capacidade de despertar no indivíduo a assim chamada “busca espiritual”: o movimento inquieto e incessante de reconexão com este “algo mais”, seja lá como for individualmente definido. Alguns o chamarão de reconexão com o ‘Divino’, com ‘Deus’ (qualquer que seja a acepção desta palavra para você, leitor), com o ‘Além’, enfim, com qualquer aspecto mágico da realidade, não manifesto na nua e crua experiência perceptível, cotidiana.

Assim, passar por uma experiência de pico pode ser, para muitas pessoas, a primeira e única forma de reconhecer um sentimento de transcendência do ego, da personalidade, da realidade limitada pela apreensão mental do mundo à sua volta e das correlações imaginárias a partir daí geradas. Ao assim fazê-lo, teria o inestimável efeito de iniciar o indivíduo na busca espiritual: uma busca de si mesmo, de seu Eu-profundo, de auto-conhecimento e de conexão mais íntima com a realidade e o mundo à sua volta. (E aqui se abre um leque de opções tão variadas quanto o número de habitantes no planeta, já que não há um caminho, nem uma vida individual, idêntica à outra).

O problema surge quando o indivíduo confunde a experiência de pico com algo que somente lhe pode ser proporcionado pela substância, ou seja, algo externo ao seu organismo e do qual ele passa a ter necessidade para atingir os picos ‘espirituais’ experimentados. Começam aí os fenômenos e movimentos religiosos associados ao culto da planta, em suas diversas ramificações, com as implicações usuais de substituir um trabalho de auto-investigação por um ritual exaustivamente repetido, muitas vezes apenas na tentativa, às vezes frustrada, de reproduzir uma experiência de pico passada, ou de obter novos ‘vislumbres’, sem qualquer efeito de melhoria na sua capacidade auto-reflexiva, na consciência de si mesmo e de sua não-separação com o universo.

Prefiro uma definição mais simples de ‘experiência espiritual’: é tudo aquilo que remove as barreiras e os impedimentos para a percepção de sua real conexão com tudo e todos, sem restrições. Os indianos falam do despertar como a remoção dos véus de Maya (= ilusão) e o entendimento de sua real existência não-separada do Todo. E para isso, nenhuma substância é necessária.

No tipo de trabalho meditativo que realizo – tanto nos grupos de homens, como nos grupos mistos – o uso de qualquer tipo de substância alteradora de consciência é em geral evitado, por diversas razões.

Em primeiro lugar (e mais importante), a própria experiência de realizar uma atividade de meditação ativa (com o corpo em movimento) pode, muitas vezes, já ser “demais” no sentido de trazer à tona para a superfície da consciência os temas e traumas emocionais que são despertados por estas práticas. Desse modo, adicionar a estas técnicas um psicotrópico pode levar indivíduos com tendência a um comportamento tipo ‘borderline’ a um surto psicótico induzido, produzindo assim o efeito contrário ao objetivo das meditações ativas, que é o de despertar para uma vida mais consciente, plena e realizada.

Em segundo lugar, há o tema da dependência: a natural tendência psicológica de atribuir à substância a única ‘chave’ responsável pela experiência mística ou espiritual, levando assim à necessidade de apego ao uso da substância, seja ela qual for, e seja qual for o contexto de ‘cura’ ou ritual a ela associado.

Veja, não sou contra o uso da ayahuasca ou de qualquer outra substância no caminho de busca, pelo contrário! Acho mesmo que, exceto nos casos de risco psicológico ou de contra-recomendação médica já comentados, todo mundo deveria experimentar para ter suas próprias referências sobre estas plantas medicinais. No entanto, o culto à planta é completamente desnecessário para a sua realização espiritual. É possível obter as mesmas experiências de não-separação, de dissolução da identificação com seu ego e com a estrutura de sua personalidade sem adição de qualquer substância, apenas com as práticas meditativas adequadas.

O sagrado é realmente isso: despertar para a sua verdadeira natureza. Você já é aquilo que você procura. Apenas relaxe e perceba. O resto é firula.

Ao fim e ao cabo, nem que seja somente por precaução, melhor voltar para a velha, boa e essencial água fresca…

“Free Men Weekend”, com David Deida

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Entre os dias 28 e 30 de outubro, 100 homens se reuniram em Highlands, North Carolina, para um retiro com meu professor David Deida. Momento único, já que David estava há mais de dez anos sem realizar um grupo específico para homens, tendo passado essa década praticamente recluso durante em média onze meses por ano, saindo da toca apenas para alguns poucos finais de semana de palestras e grupos mistos. Um fenômeno novo parece ter sido o principal motivador de sua ‘re-emergência’ deste longo período de retiro. Mas falo sobre isso mais adiante. Primeiro, ao grupo.

A experiência de conviver intensamente com um grupo, em primeiro lugar, tão grande, e, sem segundo, com tipos dos mais diferentes backgrounds, foi muito forte! Nos encontramos no aeroporto de Atlanta, na manhã de sexta-feira 28, vindos de várias partes do mundo. Havia homens do Canadá, Itália, Inglaterra, Alemanha, Leste Europeu, e, claro, de diversos estados norte-americanos. Do Brasil, somente eu e outro conterrâneo, que foi criado na Nova Zelândia e mora atualmente a Itália. A faixa etária variava de 25 a 72, com os mais variados interesses e profissões, mas muitos no grupo eram terapeutas e líderes de grupos de homens, interessados em se reconectarem com David. Muitos estariam com ele pela primeira vez.

O local foi muito próprio para este tipo de evento, um resort nas montanhas da Carolina do Norte, cerca de três horas de carro a partir do aeroporto de Atlanta. Acomodações em cabines de 2 a 8 pessoas, muita natureza e ar puro para nos revigorar, e uma comida ótima apoiavam o intenso trabalho que fizemos ali.

Por conta do elevado número de homens, os encontros com David – que aconteciam sempre à tarde e à noite – eram em um auditório, com cadeiras em duas seções ao longo do salão, e o formato destas sessões eram essencialmente de “pergunta-e-resposta” após uma fala inicial de David, com um espaço limitado para uma interação mais pessoal. Durante as manhãs de sábado e domingo, trabalhávamos diversos exercícios físicos e de respiração, com o apoio do grupo de 4 assistentes.

Como meu foco era estar com ele, chegava sempre bem cedo para pegar lugar na primeira fila. Por conta disso, tive a ‘sorte’ de subir ao palco junto com outros dois homens para um exercício mais focado e específico, tendo o privilégio de interagir com ele mais diretamente e, especialmente, de receber feedback direto do grupo de 100 homens, o que é SEMPRE muito útil. Exatamente o que eu buscava ali! (Não vou detalhar aqui, mas o feedback que recebi do grupo foi extremamente positivo e apenas confirma que minha prática está alinhada e na direção correta.)

Independentemente do histórico pessoal e das preferências de cada um, as questões que cada um trazia eram sempre relevantes para o grupo como um todo. Como identificar seu propósito? Como alinhar suas atividades diárias com este propósito? Como lidar com o trabalho, o mundo e seus relacionamentos? Como melhorar sua vida sexual, sua relação íntima? Enfim, os temas inquietantes do masculino moderno.

O mais interessante foi notar – depois de ter estado com ele pela última vez há 11 anos – que David está emergindo com seu trabalho a partir de um lugar mais profundo, de maior consciência, de maior presença, visivelmente resultado deste longo período de quase isolamento meditativo. Assim, mesmo tratando de temas mais ‘mundanos’, como relacionamento, carreira, mulheres, etc., ele sempre ‘aponta’ para o transcendente, o assim-chamado ‘lado espiritual’, sempre nos remetendo de volta à nossa condição original de não-separação, de união com tudo e todos. Minha impressão é que muitos não percebem isso, pois ainda estão ‘identificados’ ou envolvidos com suas questões mais pessoais, o que reduz a capacidade individual de apreender o quadro mais completo que há por trás de todo o movimento, o canvas de consciência onde tudo acontece. Há às vezes uma confusão entre o ‘dedo’ e a Lua para a qual o dedo aponta, na metáfora sufi.

De qualquer forma, as práticas foram intensas e transformadoras, para muitos dos homens ali presentes. Já na primeira noite, David encerrou os trabalhos trazendo ‘Spectra’, uma linda e jovem aluna sua, que se postou no palco enquanto os 100 homens exercitavam técnicas de respiração e presença, com o intuito de ‘abrir’ o Feminino. Spectra tem uma prática muito consistente de ioga sexual, e seu corpo se movia e respondia imediatamente de acordo com a profundidade do grupo de homens à sua frente. Era um exercício curto – algo de, no máximo, cinco a dez minutos – mas intenso, pelo qual ELA refletia diretamente a nossa capacidade estarmos mais presentes através da respiração e de outros exercícios que David nos mostrou. Difícil descrever em palavras um momento de êxtase de parte a parte, no qual uma jovem completamente vestida e um bando de homens respirando podem experimentar uma intimidade e um encontro único de modo tão intenso e raro, o que reflete o quão especial é esta prática. O exercício se repetiu a cada noite e de modo cada vez mais profundo, à medida que o grupo avançava no domínio de certas técnicas de respiração e presença, e Spectra podia refletir para nós o grau de maturidade e abertura do grupo.

No último jantar, antes da sessão de encerramento com Deida, tivemos um exercício de “3º estágio” (veja coluna sobre o tema aqui) entre os homens, no qual cada participante tinha que identificar outro homem para o qual fosse possível oferecer algo e abri-lo para o 3º estágio, e assim sucessivamente. Podia ser algo simples, do tipo “preciso que você alinhe sua coluna e respire mais profundamente” até coisas mais criativas e interessantes que foram acontecendo durante aquela uma hora de exercício. O nível de presença e a intensidade da abertura na sala quase ao final do exercício eram inacreditáveis! Como é possível estarmos sempre mais abertos e alertas, servindo um ao outro e ao mundo à nossa volta de modo muito mais intenso do que o nosso ‘nível habitual’ de convivência civilizada nos permite! Precisamos ousar, mas com consciência e sensibilidade!

Enfim, o grupo foi muito rico, cada homem ali contribuiu com o coletivo, dentro das suas possibilidades e apesar das dificuldades de cada um, com uma genuína disposição para estar presente e oferecer o melhor de si para o grupo. Uma experiência única de reconexão com o masculino sagrado, do qual o mundo moderno está tão carente. Foi revigorante para mim e uma experiência especial para quem estava com David pela primeira vez. Depois do retorno, hoje os homens se mantém conectados diariamente através de um grupo online fechado, e a continuidade da aplicação das práticas tem sido visível e transformadora.

Por fim, comento o que Deida compartilhou conosco como um dos motivadores para ele ‘sair da toca’ e voltar a compartilhar e treinar pessoas em seu método de trabalho. O recente fenômeno do ‘burning man‘ – eventos que são como uma grande festa rave, com a diferença de que ali se levam instalações artísticas que serão queimadas (daí o nome) no final do evento – está se espalhando pelos Estados Unidos e tem se revelado, na leitura dele, uma bela expansão do Feminino: todos se maquiam, pintam o corpo, tomam êxtase e dançam e celebram livremente, sem limites e com o propósito explícito de se abrirem para o feminino em cada um. E aqui ele enxergou uma nova possibilidade: o burning man é um movimento saudável em direção ao 2º estágio, com uma nova abertura para o feminino (em homens e mulheres, veja bem!) e seus atributos mais elevados. No entanto, sabemos que este ainda não é o ‘estágio final’, e aqui David enxergou uma possibilidade nova, de treinar um grupo de praticantes de ioga sexual para levarem estrutura (= masculino!) para a abertura (já existente) no burning man e, assim, criarem um legítimo festival de 3º estágio! A experiência ainda está em seus estágios iniciais, de formação do tal grupo de praticantes. Ficarei de olho no que vai resultar e compartilharei por aqui! Fica o convite! Bora lá!

Por enquanto, os próximos passos são: Tiffani e eu fomos selecionados para o exclusivo retiro de final de ano com o Deida na Flórida, um intensivo de três dias de prática, para apenas 14 casais. Estamos animados, nos preparando para o evento, e voltaremos inspirados para darmos o Retiro de Carnaval no Tao Tien, em fevereiro de 2017.
(Veja maiores informações aqui).

Aho!

“Danza Duende” – Remarks from a male perspective

by Ahanti Camarano

(Traduzido a pedido)
I wrote these notes from Serpa, Portugal, during the 3rd Danza Duende International Festival. Created by Yumma Mudra, a French-American witch-gypsy-dancer, the ‘Duende’ is really a delightful party of the feminine energies, expressed in an explosion of creativity that pervades this peaceful mediavel town’s deserted streets, close to the Spanish border in the Andaluzian region.

I came here through the invitation received by my wife, Tiffani Gyatso, to offer her “Slow Art” workshop as part of the event’s program. We took advantage of our planned vacations on a rented RV through Spain and Portugal, and put it all together. And what a surprise to arrive at this stronghold of art and creativity in the middle of the Portuguese ‘Alentejo’. 
The Festival is organized around the so-called ‘duende’, the creative ‘spirit’ behind eveything that takes place here, developed into a system and a school of creation by Yumma Mudra – and that I barely begin to understand while observing the activities and performances in Serpa. 
For five days, the city is fully dedicated to the event, with accommodations and local restaurants overflooded by the (majority of) women that come here to improve their expression in the ‘duende’, to share their works of art, to teach, comingle, create, laugh and cry together. In a word, to touch and open all and everything around them.
The city itself has an interesting story, earning its name from a serpent-dragon (“Serpa”) which – in ancient times – was supposed to show up in critical moments to help and support the local population, or to save them from external threats, like an enemy attack. 
Curiously, the city was kept (or so it seems to!) as it was a long time ago, with stone-paved streets, and its low, small white houses, and a wall marking the aqueduct and former castle that once defended the medieval town. Suspended time, suspended world.
One will be surprised to find the amount of modern facilities the city has to offer, like the two theaters, a high-quality public swimming-pool, plus the wonderful restaurants, all of it disguised behind old-aged white facades. 
The event has four ‘official’ languages: English, Spanish, French and Portuguese. But, in truth, the official language is that of creativity expressed through the body, the gesture and the movement, more than any spoken word, so that one can always enjoy what is being communicated, since it’s non-verbal. 
Women come from several countries, ages, and backgrounds. You can find from real gypsies (literally!) to high-level Brussels state bureocracy executives, all emerging here with their own unique, authentic contribution to this creative party that probably has no similar throughout the world. All of them absolutely gorgeous, with no exceptions.
Once again, I’m taken aback by the sheer absence of men in events of this kind. We are maybe 6 or 7 among 70+ women, whose presence dominate, with large margin, the masculine one. In his lecture on Friday morning, July 22nd, Michel Rahji, Yumma’s partner and co-organizer of the event, emphasized this point, saying also that most men present here came to the festival through their wives/partners, as it was in my case. Very seldom an event on the ‘Danza Duende’ will be an attractor for men these days.
In times like these, a small participation from the masculine side catches everyone’s attention, like yesterday’s evening, when four representatives of the local choir joined the group of women who were celebrating the four elements, and offered typical Serpa’s songs to enliven our night, in a rare combination of lost innocence and presence that touched all the participants. 
The feminine is growing, spreading itself, expanding the perceivable horizons, and not only in the more ‘obvious’ spaces, like in dance, arts, and creativity, but also in the corporate world. More and more, women are occupying spaces formerly reserved to men, from oil rigs to large corporations board rooms, not to mention the public sphere, where we can already find great women leaders – Angela Merkel, Theresa May, Hillary Clinton (?).
This is obviously a positive change – it’s never too much stressing this point – that must also be followed now by an expansion of the masculine, i.e., of the male presence in these so-called ‘typically feminine’ meetings, like this Danza Duende here in Serpa.
It’s about time for men to wake up to what is happening and begin opening themselves to the feminine aspect – within themselves and in others –, and to discover new elements of their own psyche, in order to catch-up with what their female partners are doing, so that they could walk together towards a more integral, more integrated, and more balanced way of living. 
Maybe it is only when we, men, find ourselves ready to embrace this last step that the world might collectively raise from a predominantly male chauvinistic ethos – most noticeably in the corporate sphere – and the planet could move towards a more balanced stage, where the Great Mother – Nature, the big “She” – becomes the guide to our daily actions. 
Should this movement take less then 100 years, then we might have a chance of surviving in this little Planet Earth of ours.

“Danza Duende”: uma visão do masculino no coração do feminino

Escrevo estas notas aqui de Serpa, Portugal, onde acontece a 3ª edição do “Festival Internacional de Dança Duende”. Criado por Yumma Mudra, uma franco-americana, cigana-bruxa, dançarina-artista e cidadã do mundo, o festival é literalmente uma festa, um deleite, do feminino, numa explosão criativa que toma conta das desertas ruas desta pacata cidade medieval próxima à fronteira com a região espanhola da Andaluzia. 
Vim parar aqui por intermédio do convite recebido por minha esposa, Tiffani Gyatso, para oferecer seu workshop “Slow Art” como parte da programação do evento. Aproveitamos o plano de férias com um motorhome alugado na Andaluzia e Portugal e encaixamos uma coisa na outra. E que grata surpresa chegar a este reduto de arte no meio do Alentejo português.

O festival se organiza em torno do assim chamado “duende”, o “espírito” criativo por trás de tudo o que acontece aqui, sistematizado e desenvolvido em uma escola de criação por Yumma Mudra, e que apenas começo a compreender por observação em nossa curta estadia em Serpa. 

Durante cinco dias, a cidade fica praticamente dedicada ao evento, com as acomodações e restaurantes locais tomados pelas mulheres (imensa maioria) que aqui vêem para aperfeiçoar sua expressão no ‘duende’, compartilhar seu trabalho, ensinar, conviver, criar, rir e chorar. Essencialmente, tocar e abrir tudo e todos à sua volta. 

A cidade tem uma história interessante, cujo nome provém de um mito do dragão-serpente (‘Serpa’) que, em idos tempos, alegadamente surgia em tempos de necessidade premente da população do vilarejo medieval, para salvar seus cidadãos de ameaças externas, como um ataque inimigo, ou algo semelhante. 

Curiosamente, a cidade manteve-se (assim parece!) como há muito tempo, com suas ruas calçadas de pedras grandes e irregulares, casas pequenas e baixas, praticamente todas brancas como cal, com uma grande muralha e aqueduto ainda demarcando o ‘castelo’ que fortificava a antiga cidadela medieval. Tempo suspenso, mundo suspenso.

A surpresa vem ao se descobrir a quantidade de instalações modernas, como anfiteatros (um grande e outro, um pouco menor), uma piscina pública de tamanho e qualidade olímpicos, e restaurantes maravihosos, todos disfarçados em suas fachadas de casinhas brancas e pequenas, como nos idos tempos. 

A ‘língua oficial’ do evento são quatro: espanhol, português, inglês e francês. Mas, na verdade, o idioma oficial é a criatividade externada na expressão corporal, mais no gesto e no movimento sugerido do que na palavra e na fala, de modo que sempre se pode desfrutar o que está sendo comunicado, já que não verbal. 

As mulheres são de diversas nacionalidades, de todas as idades adultas imagináveis, com experiências de vida as mais variadas. Desde ciganas (literalmente!) até funcionárias de escritório na burocracia estatal de Bruxelas, todas parecem emergir aqui com uma contribuição única, individual, autêntica, para uma festa criativa que dificilmente tem contraparte semelhante em outros países. Todas, sem exceção, absolutamente lindas. 

Novamente chama a atenção, como ocorre com frequência neste tipo de evento, a absoluta carência de homens. Somos talvez uns 6 ou 7, em total de mais de 70 mulheres. Assim, nos workshops e palestras, a presença feminina é dominante, com ampla folga. Em sua palestra na manhã desta 6ª-feira, 22/07, Michel Rahji, co-organizador e parceiro de Yumma, ressaltou este ponto, acrescentando ainda que a maioria dos homens aqui presentes veio – como foi o meu caso – por meio de sua parceira, pois, caso contrário, dificilmente viria para um evento intitulado “Danza Duende”, que parece ter muito pouco – talvez nenhum? – apelo ao masculino nestes tempos atuais.

Nestas horas, uma pequena aparição do masculino chama a atenção e causa destaque, como na noite de ontem, quando os quatro representantes do coral local se juntaram aos grupo de mulheres que fazia uma celebração aos quatro elementos e presentearam o grupo com canções típicas de Serpa, com um misto de presença e inocência perdida que tocou a todos os participantes. 

O feminino está crescendo, se ampliando, expandindo os horizontes perceptíveis, não apenas nestes espaços mais “óbvios”, como da dança, da arte e da criatividade, mas também no mundo corporativo. Cada vez mais, as mulheres estão ocupando espaços antes reservados aos homens, das atividades em plataformas de petróleo aos board rooms de grandes corporações, sem mencionar o setor público, que já lista grandes líderes de potências globais – Angela, Merkel, Theresa May, Hillary Clinton (?). 

Essa mudança é obviamente positiva – nunca é demais estressar este ponto – mas deve ser agora acompanhada também de uma expansão do masculino – literalmente, da presença masculina – nos encontros que ainda são “tipicamente” do feminino, como este Danza Duende aqui em Serpa.

É hora de os homens acordarem para este fenômeno e aprenderem a se abrir para o feminino – em si mesmos e nos outros – e descobrirem novos elementos de sua própria psiquê, a fim de avançarem um pouquinho mais depressa do que neste momento, para alcançarem suas parceiras – atuais ou futuras – nessa caminhada em direção a um viver mais íntegro, mais integrado e mais equilibrado com o mundo a nossa volta. 

Talvez seja somente quando nós, homens, estivermos prontos para darmos este passo derradeiro, que o mundo possa emergir coletivamente de um ethos ainda dominantemente masculino/machista, especialmente no mundo corporativo, e que o planeta possa enfim transitar para uma etapa mais equilibrada, em que a Grande Mãe – Natureza, “Ela”, a “Big She” – seja a orientadora de nossas ações cotidianas. 

Se isso levar menos de 100 anos, talvez ainda tenhamos chance de sobreviver neste planetinha Terra. 

Feminino equivocado – ou, “De como eu me achava masculina!”

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Neste feriado de Carnaval, recebemos no Retiro Tao Tien um grupo muito dinâmico e interessante de homens e mulheres interessados em se investigar sob a lupa do masculino e do feminino sagrados.

Embora eu talvez possa dizer que todos foram de alguma forma tocados pela vivência que fizemos lá, aproveito o espaço aqui no blog para mencionar um tema que me chamou particularmente a atenção, pois apareceu para quase metade das mulheres participantes e pelo menos um dos homens: a noção (ou o “pré-conceito”) de que a sua essência sexual era polarizada no outro gênero. Ou seja, estas mulheres chegaram ao workshop com a certeza de que suas essências eram completamente masculinas, ao passo que um dos homens tinha certeza de que era “muito feminino”. (Note que isso não tem nada a ver com a orientação sexual destas pessoas, que eram heterossexuais em todos estes casos.)

Começo pelas mulheres, já que o foco da coluna de hoje é o feminino. Ao longo dos quatro dias de trabalho, foi lindo observar cada uma delas entrando em contato com sua essência e se descobrindo absolutamente femininas, em alguns casos extremamente femininas, na “ponta” da escala de polaridade que vai do feminino extremo ao masculino extremo, com um ponto “neutro” no centro. Mas não foi esse o ponto principal. A questão central foi a surpresa de todas elas ao se descobrirem femininas e, em alguns casos, muito femininas.

Refletindo sobre o tema em uma das sessões, nos demos conta de que parte dessa surpresa decorre de um mal entendido básico acerca da natureza essencial do feminino. Praticamente todas estas mulheres compartilhavam uma visão comum do feminino como algo “frágil”, “indefeso”, “inferior”, e, assim, rejeitavam a possibilidade de serem elas mesmas reduzidas a isso. Sem dúvida, essa opinião comum a mulheres com diferentes experiências de vida e que não se conheciam fala muito sobre a educação e um certo ethos do brasileiro na sua relação com o feminino.

Infelizmente, vivemos em um país de 1º estágio, no qual o condicionamento social ainda é tal que o homem é educado como ser superior e treinado a tratar a mulher como objeto de seu prazer através de milhares de horas de “Show da Xuxa”, “Programa do Faustão” e Valescas Popozudas que abundam nos meios de comunicação de massa, bombardeando nossas crianças desde a mais tenra idade com imagens absolutamente inadequadas de precoce sensualização.

Na vida adulta, a superexposição do corpo – especialmente o feminino – e a exagerada valorização de um certo tipo de beleza – que, para desespero das mulheres que ansiosamente o perseguem, muda ao sabor dos ditames dos czares da moda – impõem uma frustração generalizada nas mulheres (e, em menor grau, nos homens), que fazem de tudo para se aproximar do tal “padrão”, sem contudo jamais chegarem lá. Talvez seja essa dupla combinação de sensualização precoce com superexposição de um certo padrão de corpo feminino que torna o Brasil um dos campeões mundiais de cirurgias plásticas. Infeliz estatística.

Em um mundo desses, não é de se estranhar que as mulheres acabem por se distanciar e mesmo rejeitar esse feminino que foi “ensinado” aos meninos e meninas desde tenra idade, identificando-se assim – erroneamente – com o masculino, ou com aquilo que acreditam ser o masculino, em si mesmas. “Sempre me achei masculina”, “gosto de fazer coisa de homem, tomar cerveja com as amigas no bar”, “sempre soube o que quis fazer e vou atrás dos meus objetivos”, foram algumas das frases mencionadas no final de semana por estas mulheres, como exemplos de sua “masculinidade”.

No entanto, confrontadas com uma visão mais profunda e generosa do feminino, segundo a qual o feminino é a própria energia da vida, aquilo que move a natureza, o clima, os humores, as mudanças de textura de cada ambiente, variando e mudando de forma a cada instante, enfim, com um feminino entendido como a própria energia do Universo, ilimitada, todas estas mulheres puderam experimentar – talvez pela primeira vez – o prazer de relaxar neste feminino amplo, ilimitado, impossível de ser contido, forte e suave ao mesmo tempo, e puderam permitir que seus corpos se movessem a partir desta energia interior recém descoberta. Assim, identificaram corretamente sua essência sexual como feminina, e não mais como erroneamente masculina, como acreditavam inicialmente.

Os “efeitos colaterais” dessa descoberta foram visíveis: risos, lágrimas, expressões faciais mais suaves, percepção de estarem mais presentes em seus próprios corpos, sensação do corpo mais aberto e relaxado, de modo que todas “brilhavam” já no meio do andamento dos trabalhos. Incrível o resultado que a simples apresentação do feminino sob um conceito mais correto e generoso de suas qualidades, aliada a e apoiada por um conjunto simples de práticas de respiração e outras práticas físicas, provocou em todas as mulheres que frequentaram este workshop de Carnaval. Um presente único para cada uma delas, bem como para os homens que testemunharam o processo.

Para encerrar, vale mencionar também a experiência de um dos homens ali presentes. Caso típico de criação com pai (= figura masculina) ausente, ele se percebia – erroneamente – como “muito feminino” e ficou extremamente surpreso ao ouvir o feedback das mulheres do grupo, que, em consenso, afirmaram perceber sua essência bastante masculina, inclusive com o depoimento de sua amiga de infância que o acompanhou ao workshop, afirmando que “sempre se sentiu ‘segura’ ao lado dele, por causa de sua presença masculina”. Essa já era minha opinião na entrevista de seleção para o grupo, mas sempre o impacto é muito maior de ouvir isso de todas as mulheres participantes.

Enfim, muito aprendizado em um curto espaço de tempo. Agora, meus votos de que cada uma delas (e deles!) se mova no mundo a partir desta nova realização.

Aho!

Uma nota sobre “Function, Flow and Glow”, de David Deida

Function, Flow & Glow cover

Numa interessante palestra em 2004 no Integral Institute, de Ken Wilber, David Deida ofereceu uma valiosa contribuição para a solução de um equívoco muito comum entre os assim chamados “buscadores espirituais”: as diferenças entre terapia – ioga – espiritualidade.

Nós vamos trabalhar esse tema daqui a algumas semanas no retiro de carnaval, por isso antecipo aqui alguns dos conceitos que serão úteis, não só para os participantes como para o público mais amplo.

Na minha experiência, comunidades espirituais costumam demonstrar preconceito com terapias em geral. No entanto, isso decorre de um mal entendido sobre os objetivos, o alcance e as formas de uma e de outra.

Terapia tem a ver com consertar aquilo que está quebrado — “ferido”, “partido” — em sua psiquê, de modo a melhorar a sua capacidade de funcionar no mundo. Desse modo, tem a ver com a “função”.

Ioga tem a ver, por outro lado, com a capacidade que o seu corpo tem de absorver, circular e devolver energia vital para o mundo à sua volta. Assim, são práticas físicas que ampliam o seu fluxo de energia, em todas as suas expressões.

Espiritualidade, por sua vez, consiste simplesmente em reconhecer a sua real natureza e a natureza de todas as coisas como uma só consciência, uma só luz, um mesmo Ser. Pessoas que experimentam estes (em geral, raros!) momentos, têm um certo brilho característico. Daí a expressão “glow” a que Deida se refere.

David usa uma imagem interessante para ilustrar esse ponto.

Imagine que você é como uma vidraça. E que se dá conta de que está quebrada. Fazer terapia significa “colar os cacos” de volta na vidraça, com o objetivo de torná-la novamente “inteira”. Assim, ela volta a funcionar como vidraça.

Na mesma situação, fazer ioga consistiria em “tirar a poeira” da vidraça, permitindo que passe mais luz através dela, mesmo continuando quebrada! Assim, tem a ver com o fluxo de energia/luz que passa através dela, mas sem alterar a sua estrutura.

A espiritualidade, por outro lado, significa reconhecer-se como a própria luz que passa pela vidraça, esteja ela quebrada ou empoeirada. Saber que você é a própria luz elimina qualquer necessidade de consertar ou limpar a vidraça… Do ponto de vista da “luz”, essas duas ações sequer fazem sentido, pois não alteram a natureza essencial da luz em si.

E é aqui que a coisa pega!

Se a metáfora acima já estiver clara, então você já entendeu as implicações deste raciocínio: nenhuma prática, técnica ou atividade tem a capacidade de lhe fazer reconhecer a sua natureza essencial como a própria luz divina. Ou seja, não importa o quanto você faça terapia ou pratique ioga/meditação, nada disso pode te levar a reconhecer a natureza última do Ser, nada disso pode te levar àquilo que muitas tradições chamam de “iluminação”.

(E, se você não estiver convencido deste meu ponto, faça o raciocínio pela negação: se não fosse assim, já haveria um “manual” de técnicas infalíveis para a iluminação. Descartando-se a seção de besteirol de “auto-ajuda espiritual” disponível nas livrarias, não me parece razoável supor que tal manual exista, ou estaríamos todos iluminados… Então…).

Outra conclusão importante deste raciocínio é que estes três “reinos” são completamente separados, como vasos não-comunicantes. Você pode conhecer uma pessoa que se “trabalhou” profundamente em terapia, se conhece em detalhes e que tem plena capacidade de funcionar no mundo em que vive, sem no entanto ter qualquer capacidade de transmitir energia/luz pelo seu corpo ou através de sua presença, nem tem qualquer entendimento de sua natureza mais profunda enquanto expressão da luz divina.

Ao mesmo tempo, há grandes iogues, com extrema capacidade de transmitir energia por sua presença — aquelas pessoas capazes de “abrir a sala” no minuto em que entram na casa — mas completamente incapazes de se relacionar de forma madura com sua esposa e/ou filhos, nem têm qualquer compreensão mais profunda sobre sua natureza divina.

E há ainda, mas em menor número, aqueles seres iluminados, auto-realizados, capazes de habitarem de modo permanente um espaço de absoluta integração com tudo e todos à sua volta, ao mesmo tempo em que não têm qualquer capacidade de transmitir energia através de seus corpos, nem conseguem funcionar minimamente na sociedade, têm problemas com dinheiro, dificuldades de relacionamento com as outras pessoas, etc.

Em suma, se você está interessado em seu desenvolvimento integral, é absolutamente crucial compreender a extensão e os limites das atividades possíveis em cada um destes “reinos” e exercer um trabalho consciente de exploração e aprofundamento nas práticas adequadas para cada uma destas expressões do ser.

E aí, qual a sua prática?

O 3º Estágio

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Na penúltima coluna (21/12/2014), explorei os dados de uma pesquisa recente, que permitia concluir pela posição “machista” tanto de homens quanto de mulheres jovens no Brasil. Chamei a isso de sociedade de “1º estágio”, tipificada na relação íntima por uma situação de dependência emocional entre o homem e a mulher, na qual cada um se vê como “propriedade” do outro. E abordei também o que seria um “2º estágio”, quando já aparece uma maior (ou completa!) igualdade de fato e de direito entre os gêneros.

Países em desenvolvimento – e notadamente a nossa cultura “latina” – são tipicamente países de 1º estágio, ao passo que sociedades mais maduras – como a Escandinávia, talvez o único exemplo mundial (!) – apresentam características de 2º estágio. Nessas sociedades, embora tenha havido significativo avanço com relação à co-dependência que caracteriza o estágio anterior, surge o efeito colateral indesejável da “despolarização” das relações, na medida em que o homem se suaviza (e perde a espinha no processo) e a mulher endurece (e perde a luz e o brilho divinos).

Prometi a saída: a terceira possibilidade, ou “3º estágio”. O que vem a ser isso? Vamos por partes.

Cada estágio corresponde a um certo nível de maturidade individual. No 1º estágio, a preocupação central sou “eu” e “minhas necessidades”. Isso inclui as necessidades materiais (sobrevivência), emocionais (carência) e mentais (aquilo que eu quero, ou acho que necessito). Nas relações sociais, corresponde ao estereótipo da relação de propriedade entre homem e mulher: “você é minha!” e “não posso ser feliz sem você!” são as frases-estereótipo deste estágio.

À medida que amadurece, o indivíduo passa para o 2º estágio, onde já reconhece que existe “pelo menos um outro”, e as relações passam a se dar de forma mais equilibrada entre “o que eu quero” x “o que nós queremos”. Socialmente, o 2º estágio pode ser representado pela “religião do equilíbrio”, em que todas as diferenças (inclusive sadias) entre gêneros são sacrificadas no altar da igualdade. Eu digo “eu te amo” e espero que você responda da mesma forma. Eu dou um passo em sua direção e espero que você também dê um passo na minha. É uma situação de “barganha permanente”: cada um ‘negocia’ um pouco de sua liberdade em troca de mais intimidade, passo a passo. E, ao mesmo tempo, cada um sabe que pode cuidar muito bem de si mesmo, sem necessitar do outro.

O 3º estágio, muito mais sutil, tem a ver com aqueles raros momentos em que reconhecemos que não há separação ou diferença entre “eu” e “os outros”, ou “o resto do mundo” – aqueles raros estados de integração com o todo e com tudo à nossa volta, que em geral se atinge em meditação profunda, ou mesmo espontaneamente, nos quais a identificação com o ego se dissolve e resta apenas uma percepção consciente de si e de tudo o mais ao redor. Os momentos de 3º estágio tendem a ocorrer cada vez mais, na medida direta de sua maturidade espiritual. E, na relação a dois, o 3º estágio se caracteriza pela entrega absoluta, sem “barganha” ou “condições” estabelecidas de parte a parte, simplesmente porque você não tem opção: você sabe, porque já experienciou isso repetidas vezes, que a alternativa à entrega é fechar-se em si mesmo, o que é sempre mais doloroso. Assim, uma relação vivida em 3º estágio se parece, externamente, com uma paixão desenfreada – típica de 1º estágio, quando as coisas ainda estão “polarizadas” –, embora seja pautada por um nível de compreensão muito mais maduro e elevado, incomparável com as limitações de co-dependência do 1º estágio. É amar “de mãos abertas”, dando liberdade absoluta ao parceiro.

Então, como diferenciar os estágios numa relação a dois? Vamos imaginar uma cena, contada a partir da perspectiva do homem – o mesmo exemplo poderia ser revertido para oferecer a perspectiva de ação da mulher no 3º estágio.

Você chega do trabalho, onde passou o dia estressado discutindo acordos comerciais complexos com clientes insuportáveis. Entra em casa e se depara com o que lhe parece a manifestação do caos na terra: as crianças fazendo guerra de almofadas na sala com a TV ligada a mil, o cachorro sujando tudo e sua esposa exausta, com o jantar atrasado e frustrada por não ter conseguido ainda o tempo para se arrumar para o compromisso de hoje à noite na casa dos vizinhos.

No 1º estágio, você cumprimenta burocraticamente sua mulher, pega uma cerveja, dá um esporro nas crianças para que tomem banho e senta em frente à TV para assistir ao esporte/noticiário e “esvaziar” a tensão do dia na bebida. Tudo isso enquanto ela finaliza a janta, cuida da louça e tenta se arrumar minimamente para o compromisso no vizinho, o que obviamente parece ser impossível de alcançar, dado o avançado da hora.

No 2º estágio, você reconhece que ela está tendo um dia tão estressante quanto o seu, lhe dá um abraço e pergunta: “estou vendo que as coisas aqui estão complicadas; como posso ajudar?”. Vocês chegam a um acordo sobre a divisão de tarefas e você vai “fazer a sua parte” do acordo, botando as crianças para tomar banho, enquanto ela finaliza o jantar. Depois você ajuda com a louça para que ela tenha tempo de se arrumar para que vocês saiam com o menor atraso possível para o compromisso com os vizinhos.

No 3º estágio, você chega em casa e, percebendo a situação, conclui que algo precisa ser feito imediatamente: aquela “tempestade” exige um hábil timoneiro, capaz de guiar a família com segurança para longe do potencial “desastre” que se anuncia no caos doméstico. Você surpreende a esposa e afasta-a do fogão, dando-lhe um longo beijo e uma pegada de saudade em sua bunda, dizendo que pare tudo e vá se arrumar, que você cuidas crianças. Enquanto bota elas no chuveiro, pede um tele-entrega de burgers e chama a babá que mora perto e já cuidou das crianças no passado. Liga para o vizinho e cancela o jantar, pois você e ela precisam de um “quality time” juntos. A babá chega, você sai pra jantar com sua esposa no restaurante preferido dela e, ao voltarem, fazem amor loucamente como nos “velhos e bons tempos”.

A compreensão do 3º estágio é o que permite essa re-polarização da relação: você não mais se comporta de acordo com aquilo que seria a sua necessidade (1º estágio), nem mesmo tenta buscar o equilíbrio no empenho de ambos para a solução da situação (2º estágio). Na verdade, você tem a capacidade de sentir a situação como um todo e agir com base naquilo que a sua intuição lhe informa como sendo o melhor para toda a comunidade (nesta cena, toda a família!).

O movimento do 2º para o 3º estágio exige a integração consciente da sombra em cada um: sem a consciência dos aspectos ocultos de sua psiquê, não há possibilidade de crescimento e aprofundamento além do estágio de serem apenas “bons parceiros”, ou “irmãos” na relação, os quase-sócios no business de criação e sustento de uma família. Tanto o homem (ou o parceiro com essência sexual masculina) quanto a mulher (ou a parceira com essência sexual feminina) precisam desenvolver uma prática individual que permita: (1) entrar em contato com a sombra em cada um, (2) dar forma e expressão a estes elementos ocultos/sombrios, (3) permitir a expressão plena e consciente da sombra na forma de energia escura (dark energy) durante a relação sexual e (4) integrar essa expressão e energia profundas no seu cotidiano.

Como uma nota de encerramento, vale lembrar que as definições acima são absolutamente esquemáticas e têm apenas o propósito de orientar não uma discussão conceitual sobre filosofia e espiritualidade, mas sim a tradução destas manifestações de energia vital na sua prática meditativa, independentemente da corrente filosófica/espiritual de sua preferência.

E, como já disse em outra coluna, cada indivíduo se encontra necessariamente em um nível absolutamente único de maturidade e, portanto, recomendações de práticas meditativas devem ser feitas caso a caso, de acordo com aquilo que é válido para o seu caso.

Não há remédio ou técnica universais.

O brasileiro é machista. A brasileira também.

Pesquisa recente do Instituto Avon e Data Popular revelou alguns dados interessantes sobre o “estágio de desenvolvimento”, como vou chamar, da juventude brasileira, no que se refere à relação de (des)igualdade entre os sexos. Isso é interessante para entendermos os limites e desafios que se impõem sobre as práticas do sagrado no masculino e no feminino. Vejamos.

Segundo os dados divulgados no início de dezembro de 2014, 48% dos jovens pesquisados consideram errado a mulher sair sozinha com amigos, sem a companhia do marido / namorado / “ficante”. Foram ouvidos 2.046 jovens de 16 a 24 anos em todo país, sendo 1.029 mulheres e 1.017 homens. A pesquisa mostrou ainda que:
– 96% dos jovens acreditam viverem em uma sociedade machista
– 68% acham errado a mulher ir para a cama no primeiro encontro
– 76% criticam aquelas que têm vários “ficantes”
– 80% afirmam que a mulher não deve ficar bêbada em festas/baladas
– 78% das jovens afirmam terem sido assediadas de alguma forma (inclui: cantada ofensiva, abordagem violenta na balada e beijo forçado)
– 1/3 declararam terem sido assediadas fisicamente no transporte público

A coisa piora um pouco quando o tema são os relacionamentos íntimos. Entre as garotas:
– 53% já tiveram o celular vasculhado pelo parceiro
– 40% têm parceiro que controla o que elas fazem e com quem estão
– 35% foram xingadas pelo namorado
– 33% impedidas de usar determinada roupa
– 9% obrigadas a fazer sexo contra a vontade (hello, isso é “estupro”!)
– 37% tiveram relação sem camisinha por influência do parceiro
– 32% tiveram que excluir alguém do Facebook por influência do parceiro
– 30% tiveram email ou perfil de rede social invadido pelo namorado
– 28% foram impedidas de conversar com amigos virtualmente

Com relação ao machismo do título da coluna, mais mulheres do que homens (42% delas e 41% deles) disseram concordar que “uma garota deve ficar com poucos homens”. E ainda 43% dos garotos diferenciam entre garotas que são “apenas para ficar” daquelas que são “para namorar”. Ou seja, aquelas que ficam com muitos homens não são para namorar; 34% das jovens pensam o mesmo. Mulheres que usam decote e saia curta estão se oferecendo, segundo 30% dos homens e 20% (!!!) das mulheres.

Ou seja, é possível concluir que a juventude brasileira média ainda tem, na sua relação íntima, a maturidade do típico estereótipo de família em que o homem enxerga a mulher como sua “propriedade” e que, portanto, ela deve lhe prestar contas, servir sexualmente, e lhe obedecer cegamente.

É o padrão de famílias dos anos 50 na Europa e Estados Unidos: o macho dominante que provê para a casa e dá a segurança física e a estabilidade material para a família – quando ele está presente e ainda não morreu no crime/tráfico de drogas, ou simplesmente sumiu por abandono da família –, e a fêmea submissa, dona de casa ou com um trabalho que apenas contribui marginalmente para a renda da família, responsável pela segurança emocional (dele inclusive) e pelos serviços sexuais ao marido.

Isso caracteriza o que chamarei aqui de “sociedade de 1º estágio”, tipificada na relação íntima por uma situação de dependência entre o homem e a mulher: ele depende dela emocional e sexualmente, ela depende dele para a segurança material. Esse padrão de comportamento é consistente com os dados obtidos pela pesquisa do Instituto.

À medida que o progresso material e psíquico acontece, a sociedade começa a entrar no que vou chamar de “2º estágio”, onde há uma maior (ou completa!) igualdade de direitos e de fato entre os gêneros. Nesse estágio, a mulher já conquistou seu lugar no mercado de trabalho, assume funções de liderança antes tipicamente exclusivas dos homens, chegando aos Conselhos de Administração e às posições de CEO em empresas relevantes. Ao mesmo tempo, no simétrico da escala, o homem aprendeu a entrar em contato com seus sentimentos: ele fez terapia, meditação, participou de grupos de homens, descobriu seu “lado feminino” e seu contato com a “Mãe Terra”, com a natureza em geral. Aprendeu a ficar menos “rígido” e a “seguir o fluxo” das coisas.

Importante notar que é um avanço essa migração – tanto individual quanto coletiva – do 1º para o 2º estágio: é um movimento libertador, para ambas as partes, que saem de uma posição de co-dependência para uma situação nova, de autonomia em si mesmos. Cada um “aprende a cuidar de si”, no 2º estágio: a mulher, passa a prover para o seu sustento e deixa de depender materialmente do marido; o homem, passa a compreender melhor seus sentimentos e a cuidar de si emocionalmente. No entanto, ao mesmo tempo em que isso acontece, há um efeito colateral subjacente, que em geral passa despercebido, mas que é um dos elementos mais críticos e presentes na atual “doença moderna dos relacionamentos”. O movimento do 1º para o 2º estágio traz consigo uma despolarização da relação masculino-feminino. Explico.

A mulher, ao sair “do lar” e assumir o cuidado das próprias finanças e por vezes o sustento de toda a família, faz um movimento do feminino (cuidar da casa / do lar) para o masculino (competir no mercado de trabalho). Nesse movimento, ela precisa incorporar aspectos típicos do masculino: direcionalidade, intenção, competição, missão, visão, foco, determinação, comunicação clara, consistência de propósitos, liderança de equipes. Ela passa a absorver e incorporar em sua ação no mundo essas qualidades do killer, típicas do masculino e necessárias para a competição no mercado de trabalho, simplesmente porque o Sistema funciona desse modo no mundo capitalista e exige esse tipo de comportamento para o sucesso. Assim, uma mulher com essência sexual feminina terá de adotar uma “capa” masculina para funcionar no mundo.

Até aí tudo bem, desde que ela pudesse se despir da “capa” assim que finalizasse sua “missão” fora de casa. Mas o problema é que as exigências do mercado de trabalho atual e o ritmo alucinante de desenvolvimento e crescimento das empresas restringe cada vez mais o tempo livre e, sem uma prática de reconexão adequada para o seu “tipo”, a mulher acaba chegando em casa para sua “segunda jornada” de trabalho: cuidar da casa, dos filhos, das tarefas escolares das crianças, etc. etc. etc. E isso acontece tanto em lares nos quais o marido já se foi, quanto nos lares em que ele está presente, mas na maioria das vezes cumpre jornada de trabalho igualmente longa e estressante, com praticamente nenhum tempo livre para a sua reconexão consigo e com a parceira. Falei da mulher. E o homem?

No caso dos homens, essa ascensão das mulheres a posições de liderança no mercado de trabalho – e, consequentemente, a maior independência financeira para sua parceira, que não precisa mais ficar em casa e depender dele – trouxe uma insegurança crescente, refletida não apenas em um novo tipo de competição no trabalho, mas também em uma parceira que tem opinião própria, sabe o que quer, tem independência financeira e “cuida do próprio nariz”, como diz o ditado. Isso deixou os homens com um novo tipo de vulnerabilidade, financeira além da emocional (que já existia desde sempre pelo perfil da criação masculina, a menos que o homem tenha buscado o auto-conhecimento). O reflexo dessa nova fragilidade é um bando de bundas-moles sem noção do que querem da vida: homens sem espinha, sem direção, sem capacidade de conduzir e guiar através das intempéries do mundo (desafios do trabalho) e da mulher (desafios no sexo e no relacionamento). E, portanto, sem capacidade de foder a sua mulher e abri-la para o Divino – que é o que o Feminino deseja, em seus lugares mais íntimos.

E aqui reside a causa de boa parte dos problemas de relacionamento no mundo moderno. A mulher independente, que confia mais na sua direção do que na dele e, assim, se recusa a se entregar, a se abandonar (surrender). O homem suave, que perdeu a espinha junto com a dureza do “macho chovinista” do 1º estágio, mas ainda não encontrou sua capacidade profunda de navegar o mundo (= a sua mulher, o trabalho, etc.) com intuição, direção e integridade.

A saída? A reconexão com o sagrado masculino e o sagrado feminino e a migração de ambos para o 3º estágio. Tema da próxima coluna.

Essência Sexual: qual é a sua? E por que ela é importante?

Na última coluna, investi um tempo para a correta conceituação do que vamos chamar por aqui de “masculino” (tudo aquilo que em você não muda) e “feminino” (tudo o mais) e fiz uma provocação de que seu crescimento e amadurecimento pessoal / espiritual dependem do equilíbrio entre os aspectos do masculino e do feminino dentro de você. Além disso, defendi a necessidade de uma prática customizada para o seu tipo, o que, por sua vez, depende da sua essência sexual. Vamos lá.

Há várias formas de abordar o tema da essência sexual, mas a versão que vou apresentar aqui usa amplamente a abordagem de David Deida (ver Intimate Communion: http://tinyurl.com/p2cjbjq), que tem um dos mais divertidos, didáticos e úteis pontos de vista sobre o assunto.

Imagine que você pudesse entrar em uma loja de departamentos cósmica e pudesse escolher, a partir de um amplo e inesgotável menu de opções, todos os aspectos de seu parceiro ideal: a aparência física, sua personalidade, características emocionais, qualidade da energia, caráter e inteligência. Vamos nos concentrar no aspecto sexual, ou seja: o que te atrai no(a) parceiro(a)? (By the way, essa será a última vez que utilizarei a politicamente correta – e chata! – forma de tratar os gêneros sempre abrangendo ele(a) e ela(o), ok? Daqui pra frente, usarei livremente a referência ao gênero que me convier, e deixo ao leitor que faça os ajustes necessários.)

Que características teria a sua parceira ideal? Fisicamente, ela deve ser mais forte ou mais delicada do que você? Maior ou menor do que você? Na cama, você prefere estar no controle da situação, fazendo-a se entregar perdidamente à sua condução, ou você prefere ser levado por ela? Se você pudesse escolher entre (a) um relacionamento perfeito e uma seqüência de trabalhos / missões insatisfatórias, ou (b) uma seqüência de relacionamentos imperfeitos e uma vocação / missão absolutamente clara e definida, o que você preferiria? Quando a sua parceira te magoa, a sua reação é (a) sentir o impulso de sair da relação, mesmo que apenas por uma noite; (b) fechar-se emocionalmente; ou (c) discutir a situação racionalmente, sem sentir a necessidade de me fechar, nem de abandonar a relação?

(Note que as perguntas acima são bastante simplificadas e esquemáticas, incapazes por si só de fornecer uma informação completa sobre o (infinito) espectro de variações e sutilezas que compõem as possibilidades de opção e atração sexual entre duas (ou mais) pessoas, bem como jamais terão a pretensão de captar as variações nas suas preferências sexuais ao longo de sua vida, ou nem mesmo ao longo de um dia. Mas elas servem como um “guia” inicial para eu fazer o meu ponto aqui.)

Assim, se você prefere uma parceira menor, mais delicada, que se deixe conduzir (sexualmente) e se, além disso, suas atitudes são mais próximas das alternativas (b) na primeira e (a) na segunda pergunta, você provavelmente tem uma essência sexual masculina. Caso contrário, obviamente sua essência sexual é mais feminina. Imagine uma “escala de polaridade” que se estenda de um ponto no extremo do feminino a outro, no extremo do masculino, tendo uma região ou um ponto “neutro” em seu centro: a sua essência vai se localizar em algum ponto dessa “escala”, enquanto o seu parceiro ideal estará em posição recíproca (ou seja, eqüidistante do centro, mas em direção ao outro pólo).

Um ponto importante: a sua essência sexual não tem qualquer relação com a sua opção sexual: você pode ser um homem heterossexual e ter a essência sexual feminina. E vice-versa, ao contrário e de ponta-cabeça. Ou seja, todas as combinações imagináveis de gênero, opção sexual e essência sexual são possíveis. Além disso, a sua essência sexual é apenas uma e não varia ao longo da vida.

A maioria das pessoas vai se identificar mais com um dos pólos do que com o outro, e tenderá a buscar um parceiro que seja seu exato recíproco. No entanto, é possível também que você esteja mais próximo do centro dessa escala, no “neutro”. Nesse caso, polaridade sexual é algo relativamente secundário em sua vida e nos seus relacionamentos. A resposta esquemática padrão é a alternativa (c) na última pergunta ali em cima. Isso não significa que você não goste de sexo, mas apenas demonstra que os assuntos relacionados com a polaridade sexual – a paixão, a atração por alguém, aquela sensação de arrebatamento e tesão incontrolável apenas ao cruzar os olhos da “pessoa certa” em pleno supermercado, o “fogo” na vida, etc. – são menos importantes do que o companheirismo e o equilíbrio (neutralidade) em sua relação íntima.

A importância de fazer esse exercício de mapeamento da sua essência sexual reside, em primeiro lugar, em facilitar a compreensão do tipo de pessoa que tenderá a “ligar” ou “acionar” a sua essência, dependo de você estar mais para o lado feminino ou masculino da escala. Dois femininos não se atraem: os pólos semelhantes se repelem, os pólos opostos se atraem. E, quanto mais você estiver próxima do extremo feminino, mais buscará um parceiro que esteja no outro extremo, do masculino.

Mas, além disso – e aqui o link com a coluna anterior -, as práticas meditativas adequadas para um tipo e outro são diametralmente opostas. Em geral, pessoas com essência sexual masculina buscam o “vazio”, a “liberdade”, como objetivo de realização. Para estas, as práticas de zazen, Vipasana, e a imensa maioria de variações das meditações ditas “estáticas”, como o sentar-se em silêncio ou a quieta recitação de mantras, têm a tendência de se “encaixarem” mais naturalmente, pois exatamente apelam para essa essência sexual masculina. Estes indivíduos terão maior facilidade com este tipo de prática meditativa.

Por outro lado, no outro extremo, se a sua essência sexual está mais no pólo feminino, seu objetivo de realização é atingido através do “amor”, da “luz” e da “plenitude”. Nesse caso, será muito mais natural para você o conjunto de práticas de meditações dinâmicas, danças sagradas, e atividades devocionais, de entrega e serviço ao outro.

No seu processo de amadurecimento individual, é fundamental “localizar” a sua essência sexual e customizar sua prática de acordo com aquilo que alinha o seu ser como um todo. E o convite aqui é óbvio: experimente! Brinque com as diferentes técnicas disponíveis para seus exercícios interiores e não tenha medo de alternar entre práticas estáticas e dinâmicas. O importante é você adquirir fluência nos aspectos do masculino e do feminino da existência, tornando-se mais completo, mais aberto e mais capacitado no entendimento do outro.

O Masculino e o Feminino em Você

Image(imagem: Tiffani Gyatso)

Como a intenção deste espaço é a “exploração do sagrado masculino e do sagrado feminino”, é importante dedicarmos pelo menos um pouco de tempo aos conceitos de masculino e feminino que usarei por aqui. 

A abordagem que vou adotar não é invenção minha, nem surgiu out of the blue. É baseada em conceitos muito antigos, com raízes em tradições como o Ayurveda e as origens do taoísmo e do tantra. 

Nós vamos convencionar como “masculino”, tudo aquilo que em você não muda, ou seja, aquilo que é permanente. Ou seja, o que é essa “coisa” que te permite acordar de manhã e não levar um susto ao se olhar no espelho, ou que te permite afirmar pensamentos do tipo “quando eu tinha oito anos, fiz isso-e-aquilo…” ? Faça esse exercício e reflita sobre aquilo que em você não muda, que te acompanha da infância à velhice e à sua morte. A isso, nós chamaremos de “masculino”. 

O “feminino” é TUDO O MAIS: tudo aquilo que muda em você, desde a sua aparência física, até as suas mudanças de humor, as qualidades de sua energia, sentimentos, sensações, percepções, o clima, as cores, cheiros e sabores que preenchem o seu dia. Tudo o que acontece, a própria VIDA desabrochando, isso é o “feminino”. 

Na Ayurveda, a fonte de toda a existência é a Consciência Cósmica universal, que se manifesta no mundo nas formas da energia masculina e feminina. “Purusha”, associado ao masculino, é a pura consciência, sem forma, passiva, além de causa-e-efeito, além de espaço e tempo, que não participa da criação, mas é a testemunha silenciosa dela. “Prakriti”, a energia feminina, é o reino da ação consciente no mundo, tem forma, cor e características, sendo a própria dança divina da criação. Todos nós somos filhotes do útero de Prakriti, a Mãe Divina. Toda a natureza vem dela. Além disso, tanto Purusha quanto Prakriti são eternos, “fora da roda do tempo”, incomensuráveis, e estão presentes em tudo e todas as coisas, incluindo-se os homens, as mulheres, todos os seres vivos e mesmo objetos inanimados. 

Assim, sempre que eu me referir ao “masculino”, estarei fazendo referência àquilo que em você não muda, à testemunha, à plena consciência observadora; e, quando falar do “feminino”, a referência é a tudo o mais em você: humores, sabores, cores, tempo, clima, energias, etc. De forma simplificada, podemos dizer que o masculino é o “reino da consciência” e o feminino é o “reino da energia ou luz”. E o Universo como o conhecemos é o resultado da foda cósmica entre Purusha, o amante, o masculino, e Prakriti, a amada, o feminino; entre os princípios ativos do masculino e do feminino, do encontro entre consciência e luz. 

Desse modo, cada momento que emerge em seu campo de atenção é uma representação instantânea desse “Big-Bang” da criação, que se repete indefinidamente, momento a momento. A sua capacidade de perceber a natureza real de cada instante como uma “micro-representação” desta foda cósmica é uma demonstração da sua maturidade espiritual. 

As práticas meditativas também podem assim ser classificadas em duas “macro-categorias”: como práticas que estimulam, alimentam e desenvolvem o masculino, ou aquelas voltadas para desenvolver o feminino. Essencialmente, práticas baseadas em uma postura imóvel, com o foco no silêncio e na observação da respiração — o estereótipo de “meditação” para os leigos — podem ser chamadas, nesse contexto, de práticas “masculinas”; por outro lado, práticas baseadas em movimentos sagrados, danças devocionais, ou meditações dinâmicas, cujo foco é o despertar e a circulação da energia vital, podem ser chamadas de práticas “femininas”. 

A partir dessa diferença fundamental entre práticas masculinas e femininas, podemos também observar que cada uma delas busca um ideal diferente: o masculino busca o vazio, o silêncio; o feminino busca a sensação de plenitude da energia, o sentimento de estar “cheio de vida”. 

Por razões históricas, a virtual exclusão das mulheres e a predominância de homens em mosteiros e círculos religiosos em geral acabou por deixar como legado uma certa perversão espiritual que associa meditação ao estereótipo do sujeito sentado em silêncio e despreza tudo o mais como nonsense. Chamo isso de “perversão” propositadamente, pois é resultado simplesmente de um prolongado período de repressão do feminino, que vai desde o século III ou IV B.C. até a ascensão do feminismo, na segunda metade do século XX. 

Hoje, há uma abertura muito maior para a exploração destes aspectos da presença alerta e consciente (masculino) e do fluxo desimpedido de energia vital e luz (feminino) em cada um de nós e, assim, a tarefa do “buscador moderno” consiste em integrar esses aspectos dentro de si mesmo, através da combinação inteligente de práticas que estimulem cada um destes “pólos” do nosso ser. O objetivo desta integração é adquirir fluência em ambos os aspectos de Purusha e Prakriti e, assim, ser capaz de uma ação equilibrada no mundo. 

No entanto, não há “receita de bolo” nem “técnica universal” que funcione para todo mundo. Isso seria tão estúpido quanto receitar laxante pra quem já está com diarréia. Para cada um, uma prática customizada, calibrada para o seu momento específico de vida e seus desafios atuais, é a única “receita” possível. Além disso, outro aspecto a considerar na definição de sua prática específica, individual, é a sua essência sexual: indivíduos com uma essência sexual mais masculina (homens ou mulheres!) terão maior identificação com as práticas masculinas e vice-versa para homens ou mulheres cuja essência for mais feminina. Isso será tema de uma próxima coluna. 

O crescimento e o amadurecimento pessoal dependem portanto deste equilíbrio entre os aspectos do masculino e do feminino dentro de você. Experimente! E boa sorte!

Meditações dinâmicas: “desentupindo o cano”

Na coluna anterior, prometi apresentar algumas técnicas para lidar com a sombra e, assim, abrir espaço para o reconhecimento e a integração do silêncio em sua vida. De novo, e como adiantei ao iniciar este blog, procurarei seguir sempre a regra de me basear apenas naquilo que é a minha experiência direta, sem entrar em discussões filosóficas ou conceituais, a menos que absolutamente necessário para ilustrar algum ponto específico do assunto abordado. Isso posto, vamos lá.

Na minha experiência, a maioria das pessoas associa “meditação” a um sujeito sentado em posição de lótus, com a coluna ereta, as mãos posicionadas sobre os joelhos, o polegar puxando o dedo indicador em direção à palma, os demais dedos esticados (também chamado “gyan mudra”), e respirando de acordo com certas regras, dependendo da escola ou doutrina seguida. Nessa versão da prática meditativa, o objetivo do meditador é silenciar a mente. (Eu volto a esse ponto em outra coluna!)

No entanto, e bastante simplificadamente, meditar significa apenas “fundir-se com” o objeto de sua meditação. Nesse sentido, meditamos quase todo o tempo, mesmo que inconscientemente. Assim, aquele momento de trânsito pesado, em que o cidadão negocia a cotoveladas (ou eu deveria dizer a “fechadas” e “guinadas”?) seu espaço entre os outros carros, é um momento em que ele se funde, se torna, aquele estereótipo de stress encarnado atrás de um volante. Num outro extremo, os dois amantes que se derretem em enlevo amoroso, deitados nus um ao lado do outro, fundindo-se um no outro e tornando-se um só, meditam na expressão deste amor em derretimento físico e na sensação se ausência de fronteiras ou limites entre um e o outro.

Entendida nesse contexto, qualquer atividade na qual você coloque sua atenção plena se torna uma meditação. Aqui entra o conceito e a importância da qualidade de sua meditação. “Você é o que você come” – ou seja, as qualidades ou características daquilo sobre o que você medita – consciente ou inconscientemente, já sabemos – tendem a se incorporar a você como seus próprios traços. Ken Wilber chama isso de converter estados em características (“states into traits“). Assim, se seus pensamentos giram constantemente em torno de seu futuro incerto, o resultado natural é o seu comportamento ansioso; se a sua preferência é pelas memórias do passado, um dos resultados possíveis é a melancolia. Desse modo, focar-se no silêncio, em pensamentos ou visualização de imagens de harmonia e compaixão, deverá trazer para seu ser qualidades mais compassivas e harmoniosas, à medida que sua prática se aprofunda.

E é aqui que entra o papel das chamadas “meditações dinâmicas”, uma das geniais criações do revolucionário místico indiano Osho (a.k.a. Bhagwan Shree Rajneesh, www.osho.com), nos anos 70. Osho percebeu, ao receber crescentes grupos de buscadores ocidentais em seu ashram em Poone, Índia, que era praticamente impossível para estas pessoas, recém saídas do dia-a-dia estressante de suas vidas urbanas, chegarem a um retiro e se sentarem em silêncio — a inércia dos pensamentos acelerados praticamente inviabilizava a experiência direta de meditação em silêncio. Era preciso primeiro esvaziar os conteúdos emocionais, as tensões físicas e os pensamentos incessantes, para que só então o sujeito conseguisse a paz necessária para um bom “zazen”. E este caminho passa pelo corpo.

Entre as “n” técnicas de meditação dinâmica criadas por Osho, certamente a mais recomendada para lidar com a sombra e a inércia de nossos conteúdos emocionais e pensamentos incessantes é a chamada, literalmente, “Dinâmica”. Composta por 5 estágios, marcados por uma trilha sonora especialmente construída para a meditação em um CD de apoio, com duração de uma hora, recomenda-se praticá-la de manhã cedo, antes de iniciar as atividades diárias. O primeiro estágio consiste em uma respiração caótica, extremamente intensa e com foco somente na “expiração”, por cerca de 10 minutos. Esse estágio é crucial e prepara o restante da meditação. Se você não coloca 100% de intensidade nesta etapa, o restante é praticamente desperdiçado. Logo após a respiração caótica, entra o segundo estágio: a catarse. É o momento de botar tudo pra fora, explodir as energias “trancadas” dentro de si, gritar, espernear, dar porrada em almofada, matar o chefe e a sogra, etc. Importante nesse momento é manter o corpo sempre em movimento, mesmo que venham sentimentos de tristeza e choro, para não deixar a energia estagnada. Essa fase será subitamente interrompida pelo “WHO”, o terceiro estágio, onde se deve saltar (baixo) sobre as plantas dos pés, com os braços esticados para o alto, ao mesmo tempo em que se emite um som gutural “WHO-WHO-WHO…” a partir do baixo ventre, ininterruptamente, seguindo a música. Esse estágio tem a dupla função de “limpar” qualquer conteúdo remanescente da fase da catarse, de forma súbita, e exaurir suas energias fisicamente, para que o silêncio — no quarto estágio — possa se manifestar. O “WHO” então termina com um súbito “STOP” e você paralisa seu movimento, na posição em que estiver, e mantém essa posição durante todo o período de silêncio. Apenas observe o que acontece, dentro e fora, seu corpo, sua energia, emoções, pensamentos. Não se envolva e apenas seja a testemunha. No final, o quinto estágio traz a música para uma dança final de celebração. E você pode comemorar ter “sobrevivido” a mais uma Dinâmica.

Não recomendo fazer essa técnica sozinho, especialmente se nunca a tiver praticado. Grupos praticantes de Dinâmica podem ser encontrados em sua região, basta dar um Google, e tem até instrução no YouTube, numa matéria do ClicRBS, com o bônus do gauchês da “guria” que descreve a técnica: http://www.youtube.com/watch?v=RhnMsJk8zdM

Como uma nota final: vai por mim, você vai ver o vídeo e achar tudo esquisitíssimo, que foi exatamente como eu reagi a primeira vez que vi alguém fazendo Dinâmica… Eu estava em um retiro na Suécia, super zen, alimentação vegetariana e tal, e, na época, eu praticava Tai Chi Chuan. Fui fazer minha prática cedinho, do lado de fora do dojo onde as meditações aconteciam, e de repente!, começa aquela barulheira lá dentro e uma norueguesa, sozinha, começou a fazer a tal da Dinâmica. Do alto da minha pretensão, pensei: “Nossa, isso é coisa pra esses europeus reprimidos, que precisam passar por isso! Eu não vejo sentido nisso, não é pra mim!” Essa era a medida do meu auto-engano… Depois que comecei a praticar Dinâmica diariamente, levei ainda várias semanas para que a “coisa” despertasse e a minha “caixa de Pandora” fosse aberta. Aí, meu caro, sai da frente!!!

O potencial dessa meditação é realmente enorme, tão ilimitado quanto as suas próprias necessidades de se observar e de se conhecer. E, na minha experiência, sem antes “se esvaziar” e “desentupir o cano”, não tem meditação “zen” que sobreviva. Na linha do que disse na coluna anterior, não existe luz sem sombra, e é impossível avançar para a luz sem trabalhar de forma consciente a sua sombra.

Encontre um grupo em sua cidade, faça Dinâmica, e compartilhe aqui.

Boa meditação!