Marcado: sombra
O 3º Estágio
Na penúltima coluna (21/12/2014), explorei os dados de uma pesquisa recente, que permitia concluir pela posição “machista” tanto de homens quanto de mulheres jovens no Brasil. Chamei a isso de sociedade de “1º estágio”, tipificada na relação íntima por uma situação de dependência emocional entre o homem e a mulher, na qual cada um se vê como “propriedade” do outro. E abordei também o que seria um “2º estágio”, quando já aparece uma maior (ou completa!) igualdade de fato e de direito entre os gêneros.
Países em desenvolvimento – e notadamente a nossa cultura “latina” – são tipicamente países de 1º estágio, ao passo que sociedades mais maduras – como a Escandinávia, talvez o único exemplo mundial (!) – apresentam características de 2º estágio. Nessas sociedades, embora tenha havido significativo avanço com relação à co-dependência que caracteriza o estágio anterior, surge o efeito colateral indesejável da “despolarização” das relações, na medida em que o homem se suaviza (e perde a espinha no processo) e a mulher endurece (e perde a luz e o brilho divinos).
Prometi a saída: a terceira possibilidade, ou “3º estágio”. O que vem a ser isso? Vamos por partes.
Cada estágio corresponde a um certo nível de maturidade individual. No 1º estágio, a preocupação central sou “eu” e “minhas necessidades”. Isso inclui as necessidades materiais (sobrevivência), emocionais (carência) e mentais (aquilo que eu quero, ou acho que necessito). Nas relações sociais, corresponde ao estereótipo da relação de propriedade entre homem e mulher: “você é minha!” e “não posso ser feliz sem você!” são as frases-estereótipo deste estágio.
À medida que amadurece, o indivíduo passa para o 2º estágio, onde já reconhece que existe “pelo menos um outro”, e as relações passam a se dar de forma mais equilibrada entre “o que eu quero” x “o que nós queremos”. Socialmente, o 2º estágio pode ser representado pela “religião do equilíbrio”, em que todas as diferenças (inclusive sadias) entre gêneros são sacrificadas no altar da igualdade. Eu digo “eu te amo” e espero que você responda da mesma forma. Eu dou um passo em sua direção e espero que você também dê um passo na minha. É uma situação de “barganha permanente”: cada um ‘negocia’ um pouco de sua liberdade em troca de mais intimidade, passo a passo. E, ao mesmo tempo, cada um sabe que pode cuidar muito bem de si mesmo, sem necessitar do outro.
O 3º estágio, muito mais sutil, tem a ver com aqueles raros momentos em que reconhecemos que não há separação ou diferença entre “eu” e “os outros”, ou “o resto do mundo” – aqueles raros estados de integração com o todo e com tudo à nossa volta, que em geral se atinge em meditação profunda, ou mesmo espontaneamente, nos quais a identificação com o ego se dissolve e resta apenas uma percepção consciente de si e de tudo o mais ao redor. Os momentos de 3º estágio tendem a ocorrer cada vez mais, na medida direta de sua maturidade espiritual. E, na relação a dois, o 3º estágio se caracteriza pela entrega absoluta, sem “barganha” ou “condições” estabelecidas de parte a parte, simplesmente porque você não tem opção: você sabe, porque já experienciou isso repetidas vezes, que a alternativa à entrega é fechar-se em si mesmo, o que é sempre mais doloroso. Assim, uma relação vivida em 3º estágio se parece, externamente, com uma paixão desenfreada – típica de 1º estágio, quando as coisas ainda estão “polarizadas” –, embora seja pautada por um nível de compreensão muito mais maduro e elevado, incomparável com as limitações de co-dependência do 1º estágio. É amar “de mãos abertas”, dando liberdade absoluta ao parceiro.
Então, como diferenciar os estágios numa relação a dois? Vamos imaginar uma cena, contada a partir da perspectiva do homem – o mesmo exemplo poderia ser revertido para oferecer a perspectiva de ação da mulher no 3º estágio.
Você chega do trabalho, onde passou o dia estressado discutindo acordos comerciais complexos com clientes insuportáveis. Entra em casa e se depara com o que lhe parece a manifestação do caos na terra: as crianças fazendo guerra de almofadas na sala com a TV ligada a mil, o cachorro sujando tudo e sua esposa exausta, com o jantar atrasado e frustrada por não ter conseguido ainda o tempo para se arrumar para o compromisso de hoje à noite na casa dos vizinhos.
No 1º estágio, você cumprimenta burocraticamente sua mulher, pega uma cerveja, dá um esporro nas crianças para que tomem banho e senta em frente à TV para assistir ao esporte/noticiário e “esvaziar” a tensão do dia na bebida. Tudo isso enquanto ela finaliza a janta, cuida da louça e tenta se arrumar minimamente para o compromisso no vizinho, o que obviamente parece ser impossível de alcançar, dado o avançado da hora.
No 2º estágio, você reconhece que ela está tendo um dia tão estressante quanto o seu, lhe dá um abraço e pergunta: “estou vendo que as coisas aqui estão complicadas; como posso ajudar?”. Vocês chegam a um acordo sobre a divisão de tarefas e você vai “fazer a sua parte” do acordo, botando as crianças para tomar banho, enquanto ela finaliza o jantar. Depois você ajuda com a louça para que ela tenha tempo de se arrumar para que vocês saiam com o menor atraso possível para o compromisso com os vizinhos.
No 3º estágio, você chega em casa e, percebendo a situação, conclui que algo precisa ser feito imediatamente: aquela “tempestade” exige um hábil timoneiro, capaz de guiar a família com segurança para longe do potencial “desastre” que se anuncia no caos doméstico. Você surpreende a esposa e afasta-a do fogão, dando-lhe um longo beijo e uma pegada de saudade em sua bunda, dizendo que pare tudo e vá se arrumar, que você cuidas crianças. Enquanto bota elas no chuveiro, pede um tele-entrega de burgers e chama a babá que mora perto e já cuidou das crianças no passado. Liga para o vizinho e cancela o jantar, pois você e ela precisam de um “quality time” juntos. A babá chega, você sai pra jantar com sua esposa no restaurante preferido dela e, ao voltarem, fazem amor loucamente como nos “velhos e bons tempos”.
A compreensão do 3º estágio é o que permite essa re-polarização da relação: você não mais se comporta de acordo com aquilo que seria a sua necessidade (1º estágio), nem mesmo tenta buscar o equilíbrio no empenho de ambos para a solução da situação (2º estágio). Na verdade, você tem a capacidade de sentir a situação como um todo e agir com base naquilo que a sua intuição lhe informa como sendo o melhor para toda a comunidade (nesta cena, toda a família!).
O movimento do 2º para o 3º estágio exige a integração consciente da sombra em cada um: sem a consciência dos aspectos ocultos de sua psiquê, não há possibilidade de crescimento e aprofundamento além do estágio de serem apenas “bons parceiros”, ou “irmãos” na relação, os quase-sócios no business de criação e sustento de uma família. Tanto o homem (ou o parceiro com essência sexual masculina) quanto a mulher (ou a parceira com essência sexual feminina) precisam desenvolver uma prática individual que permita: (1) entrar em contato com a sombra em cada um, (2) dar forma e expressão a estes elementos ocultos/sombrios, (3) permitir a expressão plena e consciente da sombra na forma de energia escura (dark energy) durante a relação sexual e (4) integrar essa expressão e energia profundas no seu cotidiano.
Como uma nota de encerramento, vale lembrar que as definições acima são absolutamente esquemáticas e têm apenas o propósito de orientar não uma discussão conceitual sobre filosofia e espiritualidade, mas sim a tradução destas manifestações de energia vital na sua prática meditativa, independentemente da corrente filosófica/espiritual de sua preferência.
E, como já disse em outra coluna, cada indivíduo se encontra necessariamente em um nível absolutamente único de maturidade e, portanto, recomendações de práticas meditativas devem ser feitas caso a caso, de acordo com aquilo que é válido para o seu caso.
Não há remédio ou técnica universais.
Meditações dinâmicas: “desentupindo o cano”
Na coluna anterior, prometi apresentar algumas técnicas para lidar com a sombra e, assim, abrir espaço para o reconhecimento e a integração do silêncio em sua vida. De novo, e como adiantei ao iniciar este blog, procurarei seguir sempre a regra de me basear apenas naquilo que é a minha experiência direta, sem entrar em discussões filosóficas ou conceituais, a menos que absolutamente necessário para ilustrar algum ponto específico do assunto abordado. Isso posto, vamos lá.
Na minha experiência, a maioria das pessoas associa “meditação” a um sujeito sentado em posição de lótus, com a coluna ereta, as mãos posicionadas sobre os joelhos, o polegar puxando o dedo indicador em direção à palma, os demais dedos esticados (também chamado “gyan mudra”), e respirando de acordo com certas regras, dependendo da escola ou doutrina seguida. Nessa versão da prática meditativa, o objetivo do meditador é silenciar a mente. (Eu volto a esse ponto em outra coluna!)
No entanto, e bastante simplificadamente, meditar significa apenas “fundir-se com” o objeto de sua meditação. Nesse sentido, meditamos quase todo o tempo, mesmo que inconscientemente. Assim, aquele momento de trânsito pesado, em que o cidadão negocia a cotoveladas (ou eu deveria dizer a “fechadas” e “guinadas”?) seu espaço entre os outros carros, é um momento em que ele se funde, se torna, aquele estereótipo de stress encarnado atrás de um volante. Num outro extremo, os dois amantes que se derretem em enlevo amoroso, deitados nus um ao lado do outro, fundindo-se um no outro e tornando-se um só, meditam na expressão deste amor em derretimento físico e na sensação se ausência de fronteiras ou limites entre um e o outro.
Entendida nesse contexto, qualquer atividade na qual você coloque sua atenção plena se torna uma meditação. Aqui entra o conceito e a importância da qualidade de sua meditação. “Você é o que você come” – ou seja, as qualidades ou características daquilo sobre o que você medita – consciente ou inconscientemente, já sabemos – tendem a se incorporar a você como seus próprios traços. Ken Wilber chama isso de converter estados em características (“states into traits“). Assim, se seus pensamentos giram constantemente em torno de seu futuro incerto, o resultado natural é o seu comportamento ansioso; se a sua preferência é pelas memórias do passado, um dos resultados possíveis é a melancolia. Desse modo, focar-se no silêncio, em pensamentos ou visualização de imagens de harmonia e compaixão, deverá trazer para seu ser qualidades mais compassivas e harmoniosas, à medida que sua prática se aprofunda.
E é aqui que entra o papel das chamadas “meditações dinâmicas”, uma das geniais criações do revolucionário místico indiano Osho (a.k.a. Bhagwan Shree Rajneesh, www.osho.com), nos anos 70. Osho percebeu, ao receber crescentes grupos de buscadores ocidentais em seu ashram em Poone, Índia, que era praticamente impossível para estas pessoas, recém saídas do dia-a-dia estressante de suas vidas urbanas, chegarem a um retiro e se sentarem em silêncio — a inércia dos pensamentos acelerados praticamente inviabilizava a experiência direta de meditação em silêncio. Era preciso primeiro esvaziar os conteúdos emocionais, as tensões físicas e os pensamentos incessantes, para que só então o sujeito conseguisse a paz necessária para um bom “zazen”. E este caminho passa pelo corpo.
Entre as “n” técnicas de meditação dinâmica criadas por Osho, certamente a mais recomendada para lidar com a sombra e a inércia de nossos conteúdos emocionais e pensamentos incessantes é a chamada, literalmente, “Dinâmica”. Composta por 5 estágios, marcados por uma trilha sonora especialmente construída para a meditação em um CD de apoio, com duração de uma hora, recomenda-se praticá-la de manhã cedo, antes de iniciar as atividades diárias. O primeiro estágio consiste em uma respiração caótica, extremamente intensa e com foco somente na “expiração”, por cerca de 10 minutos. Esse estágio é crucial e prepara o restante da meditação. Se você não coloca 100% de intensidade nesta etapa, o restante é praticamente desperdiçado. Logo após a respiração caótica, entra o segundo estágio: a catarse. É o momento de botar tudo pra fora, explodir as energias “trancadas” dentro de si, gritar, espernear, dar porrada em almofada, matar o chefe e a sogra, etc. Importante nesse momento é manter o corpo sempre em movimento, mesmo que venham sentimentos de tristeza e choro, para não deixar a energia estagnada. Essa fase será subitamente interrompida pelo “WHO”, o terceiro estágio, onde se deve saltar (baixo) sobre as plantas dos pés, com os braços esticados para o alto, ao mesmo tempo em que se emite um som gutural “WHO-WHO-WHO…” a partir do baixo ventre, ininterruptamente, seguindo a música. Esse estágio tem a dupla função de “limpar” qualquer conteúdo remanescente da fase da catarse, de forma súbita, e exaurir suas energias fisicamente, para que o silêncio — no quarto estágio — possa se manifestar. O “WHO” então termina com um súbito “STOP” e você paralisa seu movimento, na posição em que estiver, e mantém essa posição durante todo o período de silêncio. Apenas observe o que acontece, dentro e fora, seu corpo, sua energia, emoções, pensamentos. Não se envolva e apenas seja a testemunha. No final, o quinto estágio traz a música para uma dança final de celebração. E você pode comemorar ter “sobrevivido” a mais uma Dinâmica.
Não recomendo fazer essa técnica sozinho, especialmente se nunca a tiver praticado. Grupos praticantes de Dinâmica podem ser encontrados em sua região, basta dar um Google, e tem até instrução no YouTube, numa matéria do ClicRBS, com o bônus do gauchês da “guria” que descreve a técnica: http://www.youtube.com/watch?v=RhnMsJk8zdM
Como uma nota final: vai por mim, você vai ver o vídeo e achar tudo esquisitíssimo, que foi exatamente como eu reagi a primeira vez que vi alguém fazendo Dinâmica… Eu estava em um retiro na Suécia, super zen, alimentação vegetariana e tal, e, na época, eu praticava Tai Chi Chuan. Fui fazer minha prática cedinho, do lado de fora do dojo onde as meditações aconteciam, e de repente!, começa aquela barulheira lá dentro e uma norueguesa, sozinha, começou a fazer a tal da Dinâmica. Do alto da minha pretensão, pensei: “Nossa, isso é coisa pra esses europeus reprimidos, que precisam passar por isso! Eu não vejo sentido nisso, não é pra mim!” Essa era a medida do meu auto-engano… Depois que comecei a praticar Dinâmica diariamente, levei ainda várias semanas para que a “coisa” despertasse e a minha “caixa de Pandora” fosse aberta. Aí, meu caro, sai da frente!!!
O potencial dessa meditação é realmente enorme, tão ilimitado quanto as suas próprias necessidades de se observar e de se conhecer. E, na minha experiência, sem antes “se esvaziar” e “desentupir o cano”, não tem meditação “zen” que sobreviva. Na linha do que disse na coluna anterior, não existe luz sem sombra, e é impossível avançar para a luz sem trabalhar de forma consciente a sua sombra.
Encontre um grupo em sua cidade, faça Dinâmica, e compartilhe aqui.
Boa meditação!
Fantasias sexuais: o lado sombra
No grupo de homens que fizemos neste último final de semana (23-25/05), no Retiro Tao Tien http://www.taotien.com.br, em Extrema-MG, um tema que apareceu com muita intensidade foi o da sombra e seus efeitos sobre nossa vida sexual. Um equívoco comum de gente envolvida com meditação é a falsa noção de “buscar a luz”, em oposição à vida na escuridão do stress cotidiano, como se fosse possível eliminar uma ao se direcionar para a outra.
Na realidade, boa parte das práticas meditativas procura nos “trazer para o presente”, “conectar com o coração”, permitir o “desabrochar da compaixão”, e, de fato, meditações dinâmicas e o posterior e simples sentar-se em silêncio têm a capacidade de sintonizar o indivíduo com estes aspectos mais sutis — e, portanto, mais nobres — de sua psique. No entanto, neste nosso plano de existência onde a dualidade é inerente ao habitar um corpo físico, é impossível a existência de luz sem escuridão: uma não existe sem a outra. Uma boa imagem é a de um dia nublado, em que sua sombra praticamente não aparece. Surge o Sol por detrás das nuvens e, pronto!, com ele a sua sombra, tão mais marcante quanto mais intensa for a luz do Sol.
Assim, focar em práticas “amorosas”, “compassivas”, objetivo de certos tipos de meditação, tem o falso efeito de empurrar o sujeito para a luz e afastá-lo da escuridão. Falso porque, sem o reconhecimento da existência da sombra, da necessidade de seu acolhimento e posterior integração, as práticas de luz tornam-se frágeis como um gigante de pés de barro, e as manifestações da sombra “vazam” na forma dos chistes, da inveja mal disfarçada, da “concorrência espiritual” (“eu sou mais iluminado do que você”) e de todo tipo de mesquinharia que parece ser infelizmente a regra nas assim chamadas “comunidades espirituais”. Ou você mesmo não conhece algum meditador full of shit? Aquele sujeito que “se acha” superior aos demais? Esse comportamento é um reflexo típico de aspectos da sombra que, ignorada, pilota sua vida sem que você se dê conta.
O sexo é um dos campos onde isso se manifesta de forma flagrante. Para o homem, pode aparecer como o típico caso do sujeito que não consegue fazer com a própria esposa aquilo que sonha (ou, pior, FAZ) com uma puta. Para a mulher, por outro lado, o lado sombra às vezes se traduz na substituição de uma noite de “sexo divino” por mais chocolate e sapatos novos…
Quanto mais intensas suas práticas “luminosas” e de “transcendência”, tanto mais necessárias as práticas que ampliam a sua fluência no lado sombrio.
Explorar as suas fantasias sexuais, trazê-las para o seu nível consciente e, por que não?, realizá-las em determinados casos tem o efeito benéfico de integrar os aspectos de sua sombra em sua vida desperta, com um potencial benefício para todos à sua volta.
Indicações de como fazer isso deve ser tema de um próximo post.