O valor da ayahuasca (e outras experiências de pico)
Decidi escrever esta coluna depois de muito questionamento em meus grupos de homens sobre experiências com a ayahuasca e outras substâncias alteradoras de consciência – incluindo aqui a maconha e o álcool. Sei que estou correndo o risco de ofender muita gente, especialmente depois de o culto à raiz amazônica ter se disseminado tanto nos últimos anos, em todos os tipos de comunidades assim chamadas ‘espirituais’ ou de ‘buscadores’. Em todo caso, é útil avaliarmos o papel da ayahuasca e de outras substâncias capazes de causar o fenômeno comum das “experiências de pico” no caminho espiritual.
O uso da ayahuasca (também chamada de hoasca, iagê, daime, Santo Daime, ou vegetal) é antigo e remete à Amazônia peruana, com os primeiros relatos conhecidos remontando à invasão espanhola no século XVI, sendo os primeiros documentos escritos por jesuítas a partir de 1737, referindo-se ao seu uso para “adivinhação, mistificação e enfeitiçamento”. Considerada o ‘cipó do espírito’, a bebida é uma combinação da videira Banisteriopsis caapi com as plantas Psychotria viridis (‘chacrona’) e Diplopterys cabrerana (‘chaliponga’) e estima-se o início de seu uso pelos indígenas americanos entre 1500 e 2000 a.C.
Recentemente, sua expansão tem a ver com o crescimento de uma vertente da busca espiritual através do caminho das plantas e da conexão com a natureza, sendo os movimentos religiosos associados à planta mais significativos e conhecidos no Brasil o Santo Daime (1930), a União do Vegetal (1961) e a Barquinha (1945). Estas práticas modernas podem ser consideradas uma parte daquilo que chamamos latu sensu de xamanismo, ou caminho xamânico, associado aos poderes curadores dos pajés na tribos ancestrais.
Me interessa falar aqui sobre os efeitos psicotrópicos destas “drogas naturais” e seu papel na busca espiritual e no caminho do despertar.
Em primeiro lugar, alguns pesquisadores defendem uma distinção entre o que se chama de ‘alucinógenos’ (ou ‘psicodélicos’) e as substâncias enteógenas, ou enteogênicas. Estas estariam associadas a toda a substância capaz de produzir um estado alterado de consciência que induz ao ‘êxtase’ ou ao ‘estado xamânico’, enquanto as primeiras seriam mais adequadas para a classificação das drogas recreativas, como o LSD, o MDMA (ecstasy), a cannabis e o álcool. No entanto, esta distinção tem menos a ver com uma questão técnica, no sentido da farmacologia destas substâncias, e deve, na verdade, ser compreendida a partir do contexto de uso de uma e outra. Assim, as substâncias seriam consideradas enteógenas quando utilizadas em um contexto cerimonial, sagrado, ritualístico, ao passo que o uso lúdico caracterizaria a substância como psicodélica ou alucinógena.
De modo geral, a ayahuasca – e diversos de seus ‘primos’, como o peiote, o San Pedro e, numa versão mais corriqueira e (des)espiritualizada, a própria maconha e o LSD – tem o potencial de produzir o que chamamos tecnicamente de “experiência de pico”: um efeito psicológico de “vislumbre” de uma outra dimensão ou aspecto da realidade, inacessível na ausência da substância, e que para muitos se configura em sua primeira experiência de desvelamento da realidade objetiva, concreta, em “algo a mais” do que aquilo que se constata com a aplicação dos cinco sentidos nas atividades cotidianas. Muitas vezes, estas experiências acabam também sendo batizadas de “experiência mística” ou “experiência espiritual”.
Uma experiência de pico tem, assim, a capacidade de despertar no indivíduo a assim chamada “busca espiritual”: o movimento inquieto e incessante de reconexão com este “algo mais”, seja lá como for individualmente definido. Alguns o chamarão de reconexão com o ‘Divino’, com ‘Deus’ (qualquer que seja a acepção desta palavra para você, leitor), com o ‘Além’, enfim, com qualquer aspecto mágico da realidade, não manifesto na nua e crua experiência perceptível, cotidiana.
Assim, passar por uma experiência de pico pode ser, para muitas pessoas, a primeira e única forma de reconhecer um sentimento de transcendência do ego, da personalidade, da realidade limitada pela apreensão mental do mundo à sua volta e das correlações imaginárias a partir daí geradas. Ao assim fazê-lo, teria o inestimável efeito de iniciar o indivíduo na busca espiritual: uma busca de si mesmo, de seu Eu-profundo, de auto-conhecimento e de conexão mais íntima com a realidade e o mundo à sua volta. (E aqui se abre um leque de opções tão variadas quanto o número de habitantes no planeta, já que não há um caminho, nem uma vida individual, idêntica à outra).
O problema surge quando o indivíduo confunde a experiência de pico com algo que somente lhe pode ser proporcionado pela substância, ou seja, algo externo ao seu organismo e do qual ele passa a ter necessidade para atingir os picos ‘espirituais’ experimentados. Começam aí os fenômenos e movimentos religiosos associados ao culto da planta, em suas diversas ramificações, com as implicações usuais de substituir um trabalho de auto-investigação por um ritual exaustivamente repetido, muitas vezes apenas na tentativa, às vezes frustrada, de reproduzir uma experiência de pico passada, ou de obter novos ‘vislumbres’, sem qualquer efeito de melhoria na sua capacidade auto-reflexiva, na consciência de si mesmo e de sua não-separação com o universo.
Prefiro uma definição mais simples de ‘experiência espiritual’: é tudo aquilo que remove as barreiras e os impedimentos para a percepção de sua real conexão com tudo e todos, sem restrições. Os indianos falam do despertar como a remoção dos véus de Maya (= ilusão) e o entendimento de sua real existência não-separada do Todo. E para isso, nenhuma substância é necessária.
No tipo de trabalho meditativo que realizo – tanto nos grupos de homens, como nos grupos mistos – o uso de qualquer tipo de substância alteradora de consciência é em geral evitado, por diversas razões.
Em primeiro lugar (e mais importante), a própria experiência de realizar uma atividade de meditação ativa (com o corpo em movimento) pode, muitas vezes, já ser “demais” no sentido de trazer à tona para a superfície da consciência os temas e traumas emocionais que são despertados por estas práticas. Desse modo, adicionar a estas técnicas um psicotrópico pode levar indivíduos com tendência a um comportamento tipo ‘borderline’ a um surto psicótico induzido, produzindo assim o efeito contrário ao objetivo das meditações ativas, que é o de despertar para uma vida mais consciente, plena e realizada.
Em segundo lugar, há o tema da dependência: a natural tendência psicológica de atribuir à substância a única ‘chave’ responsável pela experiência mística ou espiritual, levando assim à necessidade de apego ao uso da substância, seja ela qual for, e seja qual for o contexto de ‘cura’ ou ritual a ela associado.
Veja, não sou contra o uso da ayahuasca ou de qualquer outra substância no caminho de busca, pelo contrário! Acho mesmo que, exceto nos casos de risco psicológico ou de contra-recomendação médica já comentados, todo mundo deveria experimentar para ter suas próprias referências sobre estas plantas medicinais. No entanto, o culto à planta é completamente desnecessário para a sua realização espiritual. É possível obter as mesmas experiências de não-separação, de dissolução da identificação com seu ego e com a estrutura de sua personalidade sem adição de qualquer substância, apenas com as práticas meditativas adequadas.
O sagrado é realmente isso: despertar para a sua verdadeira natureza. Você já é aquilo que você procura. Apenas relaxe e perceba. O resto é firula.
Ao fim e ao cabo, nem que seja somente por precaução, melhor voltar para a velha, boa e essencial água fresca…
Ate pouco tempo atrás eu nao enxergava desta forma. Fiz uso constante do vegetal por 3 anos e somente após uma pausa de 9 meses pude perceber parte disto. Não sei se concordo com tudo o que disse pois cada um está num degrau evolutivo. Uns precisam do vegetal, outros de rituais umbandistas, cristãos, outros de meditação que creio ser uma caminho mais leve e menos condicionado. Prático meditação também a 3 anos e ainda não consegui chegar neste grau de acesso como você o tem, mas certamente que com ritmo, constância e disciplina pode-se chegar aos níveis dimensionais que essas substâncias proporcionam. Acredito também que nada disso é necessário quando se atinge o grau de consciência plena, sem o véu da separação, mas até lá, cada um deve achar a melhor forma. É uma pena que o vegetal tenha se perdido em rituais banais, com intentos fúteis e recreativos em busca de algo que o aspirante nem sabe o que está buscando, mas quando o uso é realizado em local seguro, com indivíduos sérios e comprometidos em manter a raiz xamanica, funciona e muito bem. Posso falar pela minha própria experiência pois tive a sorte de encontrar mestres ancorados e comprometidos com a verdade e a grandeza de se usar um presente da natureza como este. A cerca de 9 meses fiz um retiro na selva amazônica peruana e posso falar que sou uma pessoa bem melhor depois desta experiência. Gratidão irmão pelas sábias palavras, respeitando o lugar e as escolhas de cada um, realmente só quem se permitiu vivenciar profundamente um ciclo com estes chás, tem a real noção do que está sendo falado neste artigo ou não né? Quem sou eu? Aho!
Excelentes e lúcidas explicações!
Apenas para fomentar mais discussões e provocações:
– Tibet, Tantra, Tankha…Mantras contínuos, visualizações, prostrações, sons de tambores, trombetas tibetanas, e até de ossos…Sânscrito, isolamentos, jejuns…práticas antigas, tudo interconectado, emergindo imagens geométricas que se tornam fenômenos integrados ao fenomeno da comunicação comunicando verdadeiras “mirações”…Isso tudo como referência de algo próximo da experiência de Ayahuasca sem o uso de qualquer coisa do tipo.
Experimentei a Ayahuasca pela primeira vez perto do ano 2010 num rito de terapia Junguiana em grupo. De lá pra cá foram tantas e tantas experiências e hoje sou próximo de uma comunidade que integra Kryia Yoga, Daime, Hatha Yoga, e é aberta ao pluralismo filosófico e religioso no aspecto dos simbolos e signos que apenas “externamente” se mostram diferentes…E mesmo num contexto intenso que incluiu uma cura que poderia ser dita milagrosa, incluindo uma experiência que só pode ser chamada de “mediúnica”, sei que, junto de todo o contexto inicial que abordei nesse comentário sobre os processos intensivos do budismo tibetano, por exemplo, que possibilitam até mesmo as “mirações” sem uso de nenhuma “substância” biológica demarcada (porém usando e abusando do “hacking mental” por meio de uma “codificação” de fatores de interlocução entre o que chamamos de espírito, corpo e mente), posso me beneficiar de um grau de sabedoria de “hacking” tanto por meios que induzem estados alterados de consciencia sem, ou com, uso de substâncias externas. Essa liberdade de saber integrar as experiências do prisma do “observador” e não do “reconhece-dor”, por si mostra que de fato tanto o reconhecimento com o uso de qualquer substância quanto o reconhecimento com o não-uso, são as ciladas de ilusão.
A liberdade de fluxo da consciência desde que conectada a algo como um “oceano” assim como um “rio” e até um “córrego” na direção da integração, é linda demais! Mas até mesmo cada gota que seca, ou cada gota de uma medicina indigena transmutada no corpo…Tanto faz a princípio se é a consciência que está desperta! Om Namah Shivaya!!! Om Ganesha Ganapataye Namaha!!! Jaya Maha Kali!!!