O chifrudo do Capitólio e a perda da virilidade

A quarta-feira 6 de janeiro de 2021 ficará marcada como o dia em que a democracia na América foi tomada de assalto por radicais de direita, anti-democráticos, todos brancos e fortemente armados, com a conivência das forças de segurança que deveriam preservar a integridade do Capitólio em Washington, D.C.

Não quero comentar aqui os elementos políticos desta desastrada afronta às instituições daquela que é considerada um exemplo entre as democracias ocidentais – afinal de contas, não é este o foco deste espaço –, mas não poderia deixar de comentar as interessantes relações entre o que vimos neste episódio e uma bem demarcada e declinante tendência de perda da virilidade entre os homens.

Não vou repetir a imagem que vimos à exaustão, do cidadão de torso nu, cara pintada, e chifres, apelidado de “Jamiroquai”, mas seu perfil merece ser explorado pelo que traz de ilustrativo deste fenômeno que quero comentar.

O sujeito tem 32 anos, é branco, mora no Arizona e completou o ensino médio em 2005. Dois anos depois, foi expulso da Marinha por se recusar a tomar a vacina contra o antrax – uma regra entre os militares norte-americanos, para proteger as tropas contra ataques biológicos. Tentou uma carreira de ator e dublador, sem sucesso. Mora com a mãe.

Ou melhor, morava, até ter sido preso depois de suas peripécias no Congresso americano e vai ter que responder por acusações de depredação de patrimônio e invasão de prédio público, com ameaça de pegar até 10 anos de cadeia. A mamãe, coitada, está muito preocupada com a saúde do “menino”, que só come comida orgânica e que, por conta disso, logrou ser recentemente transferido para uma prisão na Virgínia, mais ajustada a sua “dieta”.

(Que diferença com o tratamento recebido por Terrill Thomas, morto aos 38 anos em uma prisão de Milwaukee, depois de ficar 8 dias em confinamento na solitária, SEM ÁGUA! Claro, ele era preto.)

O camarada é militante de uma espécie de “seita” de extrema-direita intitulada QAnon, segundo a qual a política norte-americana foi tomada por pedófilos satanistas canibais, que controlam uma rede global de tráfico de crianças para fins sexuais, e que pretendiam apear o então presidente Trump do poder. A suposta seita ganhou projeção nas redes sociais a partir de outubro de 2017, e o número de idiotas a ela associado cresceu desde então, fenômeno típico de radicalização que tem se acentuado em tempos recentes pelas redes (anti)sociais.

Pelo menos o sujeito está preso, junto com cerca de outros 120 imbecis que participaram da invasão ao Capitólio.

Mas aí me pergunto: como é possível entender isso?

Meu palpite é que o chifrudo do Capitólio e sua turma são a “ponta do iceberg”, ou apenas o fenômeno mais radical e visível de algo que subjaz na relação entre os gêneros há muito tempo e que vem ganhando destaque neste novo século: a exacerbação do medo/ódio do feminino pelos homens.

O medo dos homens com relação ao feminino não é recente. Muito pelo contrário, suspeito que remonta aos tempos em que as tribos de caçadores-coletores se converteram em grupos agricultores sedentários e surgiu a noção de propriedade privada. A preocupação com os herdeiros trouxe a necessidade de garantir que a prole que o chefe alimentava era de fato geneticamente sua. Começa aí o controle do útero da mulher pelo homem, que perdura até hoje e tem sua expressão máxima no condicionamento limitante trazido pelo patriarcado.

E mesmo em culturas consideradas mais “espiritualizadas”, notadamente no Oriente, as mulheres foram impedidas de entrarem nos monastérios e, quando manifestavam alguma “vocação espiritual”, foram apartadas em conventos específicos para elas e relegadas sempre a papéis secundários nas grandes religiões que conhecemos. O profundo conhecimento e sabedoria do feminino foi passado de geração em geração pela tradição oral e, por não ser documentado, em grande parte se perdeu, ou foi intencionalmente destruído nos inúmeros episódios de “caça às bruxas” que conhecemos.

Com a Revolução Industrial e a rápida expansão da tecnologia dela decorrente, tem início a primeira onda de redução do poder do masculino, associado no passado à superioridade física do homem e à pura brutalidade das guerras tribais e do controle territorial, às quais se sucediam o estupro das mulheres da aldeia recém conquistada. As máquinas passavam a substituir o trabalho braçal e, à medida que a tecnologia se modernizava, cada vez mais era possível às mulheres realizar exatamente as mesmas tarefas que os homens.

Outro efeito colateral negativo (para os homens!) da Revolução Industrial foi separar os meninos de seus pais nos afazeres cotidianos. No passado, o “ofício” era transmitido de pai para filho na lide diária, seja na agricultura, seja na atividade artesanal: “filho de sapateiro, sapateiro é”. Embora houvesse praticamente uma ausência completa de mobilidade social nestes regimes “tradicionais”, se preservava um aspecto muito importante do masculino, que é o aprendizado por transmissão ou por imitação direta: o menino “aprende” a ser homem por imitação dos comportamentos do pai. Com a chegada das fábricas e do trabalho de escritório necessário para administrá-las, o menino vê o pai sair de casa para trabalhar, mas não tem a menor noção do que ele concretamente faz. Ele apenas observa o pai retornar à noite, exaurido e esvaziado de propósito, e passa a associar um fardo negativo ao trabalho ou ao emprego. A noção de “missão” desaparece.

Ao final do século XIX, surge o movimento sufragista e a primeira onda do feminismo, questionando as diferenças de direitos entre homens e mulheres. Já no século XX, as Grandes Guerras acentuaram o movimento de entrada das mulheres nas fábricas, ao mesmo tempo em que mutilavam os homens nos campos de batalha, trazendo um renovado medo da castração e perda de virilidade e de poder físico dela decorrentes.

Nos anos 1960, o movimento feminista realmente ganha força e acelera um conjunto de mudanças aparentemente sem retorno nas sociedades ocidentais, que hoje inclusive contamina positivamente regiões outrora mais atrasadas do Oriente. Mas o quadrilátero pílula-independência financeira-divórcio-ausência do pai, embora trazendo crescente e positiva liberdade para as mulheres, acabou criando uma geração de meninos que cresceu sem uma figura paterna madura e estável como referência.

Nas sociedades tribais, a marcação biológica da menarca (a primeira menstruação) era acompanhada, no caso dos meninos, de um ritual correspondente de iniciação à idade adulta que era marcado, entre outros elementos, por uma traumática separação física da mãe, com o intuito de fazer o menino-criança se libertar do “complexo materno” e penetrar no mundo do adulto-guerreiro.

Com a perda dessa conexão ancestral com os ritos de iniciação, temos como resultado esse fenômeno psicológico moderno e cada vez mais doentio: a adolescência. Período que começa por volta dos 12 anos nos meninos e que, em muitos casos, se estende pelo resto da vida…

Recentemente, a contínua expansão dos direitos das mulheres e ascensão delas no mercado de trabalho trouxe ganhos e vantagens também para outras minorias tradicionalmente excluídas pelo patriarcado, como os negros e a comunidade LGBTQIA+, deixando o homenzinho branco cada vez mais acuado.

Hoje, pelos menos nos Estados Unidos, já há mais mulheres diplomadas em universidades do que homens, que tendem a abandonar os estudos antes mesmo do final do ensino médio. Como consequência, o homem perdeu também o papel de “provedor” e de responsável pela renda familiar, já que sua parceira é mais bem sucedida e ganha mais do que ele. (No exemplo em questão, nosso chifrudo morava com a mamãe até ser preso).

Como era de se esperar, há um movimento reacionário, conservador, que fala para essa população de machinhos ofendidos e acentua o ódio primal do feminino: começam os NOFAP (movimento que prega abstinência) e os MGTOW (“men going their own way”, que defendem o fim do relacionamento equilibrado entre homens e mulheres e o uso dos corpos delas apenas para a satisfação sexual). Há inclusive novos “pensadores” (sic) do conservadorismo machista, como Jack Donovan – que é homosexual, mas repudia a “cultura gay” –, que são extremamente misóginos e argumentam que o globalismo e a civilização “feminilizam” a humanidade e enfraquecem a natureza viril do homem. Para este tipo de imbecil, a solução dos problemas do homem contemporâneo é o chamado “tribalismo bárbaro”, ou atuação em gangues, que recolocará os homens em posição de destaque – que nunca perderam, cá entre nós – através da violência extrema. Daí o chifrudo do Capitólio.

O que vemos na prática é um crescimento alarmante da violência contras as mulheres em geral, e o feminicídio em particular, especialmente agravados pelo confinamento social trazido pela pandemia da COVID-19.

Há um arranjo de forças conservadoras que buscam manter a assimetria de gênero e a heteronormatividade a todo custo, inclusive causando potencial retrocesso em ganhos e conquistas sociais recentes, como a união homo-afetiva e os ainda pequenos avanços na liberdade do útero, através de leis mais flexíveis quanto ao aborto – não no Brasil evangélico, infelizmente.

Temos muito o que avançar na desconstrução do machismo no país. Talvez ridicularizar os chifrudos do Capitólio e a “machonaria” no Brasil seja um bom começo.

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